Nelson L. Carlini é engenheiro naval e consultor na área de logística portuária e navegação
No Brasil, a tentativa de equacionar problemas estruturais, em especial nos segmentos de logística e transporte, quando encontra empenho e boa fé por parte de autoridades e agentes públicos, não raro esbarra em erros de diagnóstico que acabam comprometendo o objetivo pretendido. É ao que assistimos neste momento em relação aos projetos em discussão em esferas governamentais que pretensamente visam o desenvolvimento da navegação de cabotagem.
Esses projetos surgem em resposta à forte pressão de setores produtivos nacionais, notadamente, o agronegócio, que reconhecem as significativas vantagens deste modal para o transporte de cargas dentro do território brasileiro. De fato, a cabotagem apresenta diferenciais muito positivos em relação aos modais rodoviário, ferroviário e aéreo, o que recomenda a tomada de medidas e a adoção de iniciativas para a sua expansão.
O problema é que o debate em torno de seu desenvolvimento tem sido estabelecido com base em três premissas equivocadas: a primeira, de que a cabotagem está estagnada, o que não é de forma alguma verdade; a segunda, de que, para que o modal se desenvolva, será necessária uma abertura completa a empresas estrangeiras, sem qualquer reserva às empresas nacionais - algo que não existe em lugar nenhum do mundo; por fim, a terceira, a de que um dos grandes entraves à expansão da navegação entre portos nacionais é o atual quadro de paralisia de nossa indústria de construção naval, outrora tão dinâmica.
Para que essas premissas equivocadas não nos conduzam novamente - e a despeito das melhores intenções - a políticas e medidas infrutíferas, inconsequentes e mesmo catastróficas, como já vimos no passado, vamos aos fatos.
Em primeiro lugar, a cabotagem brasileira não está estagnada, mas, ao contrário, tem vivido um dos seus períodos de maior expansão, em que pese o seu desenvolvimento poder ser ainda maior, se as medidas corretas forem adotadas. Hoje, a cabotagem representa cerca de 9,6% da matriz de transportes brasileira, um percentual que alcança os 13% se, além da navegação entre portos no nosso litoral de mais de 7,5 mil de extensão (com cerca de 30 portos organizados), incluirmos os transportes hidroviário e lacustre - ou seja, o total do transporte aquaviário.
O crescimento da cabotagem tem estado acima do Produto Interno Bruto - PIB. Pode-se até pensar que, tendo em vista a crise iniciada em 2014, não seria vantagem crescer acima do PIB, porém, o notável é justamente registrar crescimento na movimentação interna de carga muito acima do crescimento da economia, em meio à mais profunda e longeva recessão que o país já enfrentou, e de cujos efeitos ainda tenta se livrar. Este crescimento da cabotagem tem se dado em todo tipo de carga, contudo, é mais expressivo e robusto no segmento de contêineres, cuja taxa de expansão, entre 2010 e 2018, foi de 12,5%. Isso se deve, evidentemente, à economicidade e à agilidade propiciadas pela padronização que resulta da "contêinerização" da carga.
Para atender a este aumento de demanda, as empresas brasileiras de navegação, as chamadas EBNs - que por força de Lei são as responsáveis pelo transporte aquaviário - investiram nos últimos dez anos quase R$ 4 bilhões na aquisição de navios de bandeira brasileira. Mais investimentos terão que ser feitos - e para tanto as políticas adotadas devem partir de premissas verdadeiras, preservando a segurança jurídica -, uma vez que as projeções são de que o setor deva crescer ao menos mais 5% até 2021, e isso considerando cenários de lenta recuperação econômica. E tanto maior será a demanda e tenderá a ser o crescimento do setor quanto mais rápida for a recuperação econômica, que já se iniciou.
Portanto, a ideia de que a cabotagem e com ela o transporte aquaviário de forma geral estão estagnados não condiz com a realidade. E a razão para que este modal venha crescendo em meio a um momento desfavorável da economia, e apesar da falta de incentivos adequados ao setor, está precisamente nas suas vantagens diferenciais que, em linhas gerais, são: possibilidade de economia de escala, ou seja, menor custo unitário; baixa sinistralidade; segurança da carga; economia de combustível; e, o que é relevante para a sociedade, o fato de ser um modal muito menos poluente, cujas as emissões são até quatro vezes menores do que as do transporte rodoviário.
Dados da ABAC - Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem apontam que a cabotagem permite hoje à cadeia produtiva nacional uma economia de R$ 1,7 bilhão em fretes e uma redução de 10 mil acidentes nas rodovias nacionais, graças às substituições das carretas e caminhões pelos navios. Não é à toa que pesquisas (como a do ILOS 2017) atestam que mais de 60% das empresas que movimentam carga internamente no Brasil pretendem aumentar a utilização deste modal.
A segunda premissa falsa e que compromete a estruturação de políticas setoriais apropriadas, conforme referido de início, é a de que o desenvolvimento da cabotagem - e, por extensão, do transporte aquaviário como um todo - depende da abertura às empresas estrangeiras, livre de qualquer reserva de mercado para as empresas nacionais. Ora, a legislação brasileira está longe de ser a mais restritiva do mundo no que toca à reserva de mercado para o transporte aquaviário. Ao contrário, a Lei nº 9.432/1997, marco legal do setor, talvez seja uma das mais brandas, estipulando apenas que as embarcações devam ser de empresas brasileiras, ou ao menos afretadas por essas quando não puderem ser produzidas aqui, desde que 2/3 da tripulação sejam de brasileiros.
Não faz sentido permitir que o transporte aquaviário brasileiro seja totalmente aberto ao exterior, assim como não faz sentido que os modais rodoviário, ferroviário e aéreo sejam totalmente franqueados a companhias internacionais, que teriam, pelas escalas globais inerentes à sua atuação, vantagens competitivas desproporcionais em relação às empresas nacionais, que simplesmente desapareceriam do mapa, com prejuízo para a nossa economia tanto no que toca a redução de postos de trabalho quanto a geração de receitas por meio da conta de serviços (fretes). Seria justo? Vale dizer que isso não ocorre em nenhuma parte no mundo.
Na União Europeia, as embarcações devem ser registradas em um dos países membros, com a maioria dos tripulantes sendo de integrantes da comunidade. Na China, o governo impõe de forma rígida que embarcações, navios e tripulação sejam de nacionais, permitindo algumas parcerias com estrangeiros sob estrita autorização do governo. No Japão, embarcações usadas na cabotagem devem ter bandeira e tripulantes nacionais, com possibilidade de parcerias com países que apliquem a reciprocidade.
Nos EUA, o "exemplo do liberalismo econômico", o Jones Act (Merchant Marine Act), lei que há 100 anos regula cabotagem, é considerada a mais restritiva do mundo pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Entre as muitas exigências, não apenas a tripulação e os navios devam ser americanos, como as embarcações devem ter quase a totalidade de seus componentes produzidos em solo americano - uma exigência que faz com que, hoje, os navios usados na cabotagem nos EUA cheguem a custar US$ 180 milhões, portanto, seis vezes mais caros que os similares produzidos nos estaleiros asiáticos - o que, evidentemente, tem repercussão negativa sobre a eficiência e competitividade da própria economia norte-americana. Portanto, se nenhum país do Mundo escancara a sua cabotagem a estrangeiros, porque nós brasileiros devemos fazê-lo?
A terceira premissa equivocada aponta como um dos vilões que emperram a cabotagem a indústria naval brasileira, novamente combalida. A tese, embora radical e desprovida de fundamentos técnicos consistentes que indiquem a efetiva relação da causa com o resultado, prosperou a ponto de influenciar a apresentação de um Projeto de Lei. Eis que o PL 2948, de autoria do senador Álvaro Dias (com relatoria da senadora Kátia Abreu), em trâmite no Congresso, altera a Lei nº 9.432 de 1997, para estabelecer que o local de construção da embarcação é irrelevante para fins de considerá-la brasileira, bem como para excluir a necessidade de autorização do órgão competente para a aquisição de embarcação estrangeira para emprego na cabotagem.
O referido PL não apenas estabelece um caminho tortuoso para tentar afastar os entraves à cabotagem, haja vista que os principais obstáculos ao setor são mais simples e de outra ordem, como veremos logo à frente, como a sua aprovação pode sepultar de vez o desejado reflorescimento da indústria naval brasileira. Em outras palavras, o projeto não resolve os problemas de um setor estratégico para o país e ainda enterra de vez as possibilidades de outro segmento, igualmente relevante, se reerguer.
No passado recente, a indústria naval brasileira foi vítima de uma política irresponsável, que "orientou" contratos de valores estratosféricos, irreais, para o segmento de oil & gas, com notórios e públicos episódios de desvios e sobrepreços, alguns já punidos pela Justiça, levando os estaleiros nacionais a um alto grau de endividamento e a consequente insolvência. Soma-se a isso a prodigalidade do BNDES no financiamento da construção de inúmeros estaleiros, sem base em capacidade de competição e fundamentado numa demanda artificialmente inflada, o que constituiu mais um exemplo de como o "capitalismo de Estado" é perverso, mina a eficiência econômica, e por isso anda na contramão dos interesses da sociedade.
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Apontadas as falsas premissas, podemos dizer que os verdadeiros entraves para o desenvolvimento do setor são o excesso de burocracia no embarque e desembarque de mercadorias nos terminais portuários, não merecendo a cabotagem, por parte dos órgãos intervenientes, tratamento diferenciado em relação à navegação de longo curso; o alto preço do combustível (bunker), também mais caro do que o usado pelas empresas estrangeiras na navegação de longo curso e sem contar com os subsídios do diesel rodoviário, seu modal competidor; custo excessivo da mão de obra, sobretudo se comparado ao das empresas de navegação estrangeiras que atuam no longo curso, bem como exigências excessivas de tripulação não acompanhando a modernização dos projetos dos navios; e, por fim, a ausência de uma política convergente para a indústria naval, com o estabelecimento de medidas abrangentes que estipulem contrapartidas de exportação e aumento da eficiência na concessão de linhas de crédito específicas para o fortalecimento do setor. É preciso definir uma política de parâmetros transparentes, visando a renovação e ampliação de nossa frota de cabotagem.
São os verdadeiros entraves que devem servir de premissas para uma reestruturação setorial realista, voltada para o desenvolvimento.