I
A história do romance de identidade portuária Navios Iluminados acontece entre o final de 1926 e 1931 ou 32, data imprecisa mas que pode ser suposta pelo desenvolvimento do enredo. Esse período cobre a vida de José Severino de Jesus em Santos, desde quando chega, aos 23 anos, de Patrocínio do Coité, no sertão da Bahia, para buscar trabalho como estivador. O bairro portuário do Macuco é o cenário da história de gente pobre e migrante de José Severino, personagem que, no universo da ficção, é parente de Fabiano e Macabéa, personagens de Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1938) e Clarice Lispector (A Hora da Estrela, 1977).
Não por acaso, o sobrenome Jesus nos dá a dica do andamento narrativo, da cadência, do romance: o martírio de José Severino em Santos – não que não sofresse em Patrocínio, mas lá estava junto à família na terra em que havia nascido e da qual era feito. A Santos, cidade dos navios iluminados, Severino nunca se acostumou, trocando empregos ruins por outros piores e quartos ruins por porões menores, por quais tantos outros passaram. O personagem tem seu rumo traçado em uma narrativa de denúncia social – como era comum nos anos 30 – em forma de tragédia, gênero do qual o martírio é um dos elementos.
II
Não tenho indicações sobre quanto tempo o escritor sergipano Ranulpho Prata levou para escrever e publicar Navios Iluminados, seu último romance. Mas o médico Ranulpho Prata trava contato com o universo que ali descreveria na segunda metade da década de 20, quando se muda de Mirassol, interior de São Paulo, para Santos para atuar como pneumologista do serviço médico dos estivadores.
Prata continuaria atendendo os pacientes do ambulatório Gaffrée & Guinle em seu consultório de radiologia, na Praça Rui Barbosa, 27, pelo menos até o ano seguinte à publicação do romance: em primeiro de janeiro de 1938, um anúncio de Prata em A Tribuna informava que fazia chapas de pulmões, coração, aorta, estômago, rins e vesícula biliar para o ambulatório e também para a Santa Casa e a Beneficência Portuguesa. Além do telefone do consultório, o anúncio trazia o da casa do médico, ainda na época dos quatro dígitos: 6063. Ele morreria cedo, antes dos 50 anos, no início da década de 40. Apesar de longos períodos viajando, fixou-se em Santos.
III
Chegamos aqui a uma pergunta: se Prata ainda atendia em 1938 por que então a história termina em 1931 ou 32?
Talvez o romance tenha sido escrito sob o impacto do contato inicial de Prata com os estivadores e outros homens das mais variadas profissões portuárias. Em suas cartas de juventude trocadas com o escritor carioca Lima Barreto em 1921, o jovem médico lamenta não morar em uma cidade com o agito urbano do Rio de Janeiro, cenário em que poderia criar personagens e tramas como os de Histórias e Sonhos, reunião de contos e escritos do final de vida de Lima Barreto, que morreria em 1922. Mas só uma outra carta de Prata, um diário ou um relato de alguma testemunha poderia esclarecer o tempo e período que Prata dedicou à escrita de seu livro.
IV
Mas tal descoberta comprovaria apenas um fato, o que nos manteria no campo da biografia. Como Porto Literário é um espaço dedicado à História, arrisco então uma interpretação, já anteriormente esboçada:
A década de 30, além da legislação trabalhista, é marcada por conquistas específicas para a categoria dos estivadores, como a legislação de limite de peso das cargas e, mais importante, o controle da utilização da mão-de-obra, chamado pelo nome em inglês de closed shop.
Em 1932 as pressões dos trabalhadores e sindicalistas fazem com que o Centro dos Estivadores de Santos (CES) se torne o único fornecedor de mão-de-obra para os embarques e desembarques. Em abril de 1933 (quando a história de Navios Iluminados já tinha acabado), a posição do sindicato se fortalece com a assinatura do Contrato para o Serviço de Estiva no Porto de Santos entre o CES, Centro dos Empreiteiros e Centro de Navegação Transatlântica de Santos (a assinatura do documento foi realizada na sede do Centro dos Estivadores). Um pouco mais tarde, em 1939, o governo federal oficializa a closed shop para todos os portos do Brasil, desde que os sindicatos fossem reconhecidos pelo governo. O novo momento renderia mais tarde ficções que falariam da fase heróica, do porto vermelho, como o romance Agonia na Noite, de Jorge Amado, e o poema Santos revisitada, de Pablo Neruda.
Mas temos ainda um último componente da equação: Prata revelou na introdução de Lampião (1934), seu único livro de não-ficção e obra imediatamente anterior ao Navios Iluminados, seu projeto de escrever com o compromisso de mostrar a verdade, de traçar os fatos com precisão.
Agora, unamos os elementos literários (a tragédia na forma de narrar e a busca da verdade pelo autor) ao histórico (as conquistas de 30) e talvez possamos determinar: para que uma narrativa de tragédia social no cais de Santos seja precisa e tenha verossimilhança, sua história não pode ultrapassar o ano de 1932, limite máximo do tempo da tragédia.
Não que os acidentes e as agruras tenham desaparecido. É que a dinâmica social que acaba por dar novos sentidos aos grupos humanos e, por mais que os escritores engajados tenham colorido o heroísmo de sues estivadores, era natural que houvesse entre eles (os trabalhadores) um clima de otimismo, última das palavras que poderíamos aplicar à obra de Ranulpho Prata. O distanciamento no tempo entre narrativa e fatos narrados, ainda que pequeno, é a chave que faz a história de Navios Iluminados atingir seu efeito literário e estético sobre o leitor, mérito que talvez tenha valido o prêmio concedido ao livro pela Academia Brasileira de Letras.
Ainda em 1938, a Folha da Manhã escreveria que Navios Iluminados era o romance que faltava ser escrito sobre o porto de Santos.
Referência:
Ranulpho Prata. Navios Iluminados. Coleção Brasilis. São Paulo: Scritta/Página Aberta-Prefeitura Municipal de Santos, 1996 (1ª edição: 1937).
Fernando Teixeira da Silva. Operários sem patrões. Os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Editora Unicamp; Campinas; 2003.