A memória é matéria fugidia, sujeita à ação do tempo e às distorções daquele que lembra. Mesmo assim, o uso do registro pessoal não é descartado pela pesquisa nas ciências sociais. A História de Vida e a História Oral, por exemplo, demonstram a utilização do depoimento e da trajetória pessoal como formadores do discurso científico histórico.
Apesar de estarem sujeitas aos problemas indicados acima, as duas modalidades de pesquisa, alerta Teresa Maria Frota Haguette em Metodologias Qualitativas na Sociologia, são ferramentas de pesquisa utilizadas com objetivos específicos, principalmente quando o pesquisador se depara com um campo de estudos já bem desbravado. A História de Vida e a História Oral podem abrir portas da pesquisa, dando novos contornos ao objeto, ou definindo novas hipóteses e questões oferecidas pela confrontação de seus conteúdos com os documentos mais usuais.
As duas ferramentas valem para o historiador ou outro cientista social se, principalmente, forem tomadas em conjunto, para que visões parciais de um determinado depoimento ou biografia possam ser confrontados com o “conjunto de depoimentos que informam o todo de um determinado projeto de pesquisa”.
Isso tudo é para apresentar o poema “Santos”, de Rui Ribeiro Couto (1898-1963), poeta santista, jornalista, romancista, diplomata, que utiliza a memória para poetizar sua infância e ligá-la ao cotidiano do porto. Se a História Oral e a História de Vida as distorções devem ser evitadas, já a poesia conta com o deságio da memória para oferecer suas imagens (senão seríamos todos Funes, o Memorioso, personagem de Jorge Luis Borges que para lembrar tudo que fez em um determinado dia precisava de um outro dia inteiro).
Primeiro, vamos acompanhar a primeira parte do poema:
“Nasci junto do porto, ouvindo o barulho dos embarques
Os pesados carretões de café
Sacudiam as ruas, faziam tremer o meu berço.
Cresci junto do porto, vendo a azáfama dos embarques.
O apito triste dos cargueiros que partiam
Deixava longas ressonâncias na minha rua.
Brinquei de pegador entre vagões das docas,
Os grãos de café, perdidos no lajedo,
Eram pedrinhas que eu atirava noutros meninos.
As grades de ferro dos armazéns, fechados à noite,
Faziam sonhar (tantas mercadorias!)
E me ensinavam a poesia do comércio.
Sou bem teu filho, ó, cidade marítima,
Tenho no sangue o instinto da partida,
O amor dos estrangeiros e das nações,
Ó, não me esqueças nunca, ó, cidade marítima,
Que eu te trago comigo por todos os climas
E o cheiro do café me dá tua presença.”
A primeira lembrança do narrador, dos carretões de café que faziam seu berço tremer, ou são fruto da imaginação (a distorção a favor da força da poesia) ou do relato de um adulto recuperado pela memória do poeta. É uma memória da memória, ou memória ao quadrado, que multiplica a sensibilidade da forma poética.
Logo a seguir, são os versos que remetem às brincadeiras de rua, a brincadeira de pegador entre os vagões, os grãos de café para tacar como “pedrinhas” nos outros meninos. Uma infância nas margens do porto bem diferente daquela descrita por Plínio Marcos em Querô, uma reportagem maldita (leia aqui O porto dos pequenos expedientes).
Já as duas estrofes finais do poema de Ribeiro Couto revelam a figura do diplomata que tem no sangue o “amor dos estrangeiros e das nações”, figura formada desde a infância com os apitos dos cargueiros que deixavam ressonâncias pelas ruas e acabaram por alimentar o “instinto da partida”, que, por sua vez, não consegue deixar para trás a cidade natal lembrada a cada gole de café. Na verdade, o título de outro poema do autor, desmente a expressão cidade natal. Rui Ribeiro Couto não tem cidade natal, tem porto natal.
Referências:
O poema “Santos” foi publicado em:
Rui Ribeiro Couto. Noroeste e Outros Poemas do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933.
O trecho recortado acima do poema “Santos” e outros poemas de Rui Ribeiro Couto podem ser lidos em Novo Milênio, do colega colunista Carlos Pimentel. Outro site, o Portocidade também traz trechos do poema e obras de outros poetas que trataram do porto, mas as páginas com as reproduções não abriram até a data desta atualização.
Teresa Maria Frota Haguette. Metodologias Qualitativas na Sociologia. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1990.
O conto “Funes, o memorioso” é de:
Jorge Luis Borges. Artifícios. In: Obras Completas I. São Paulo: Editora Globo, 1998.
Outros artigos em Porto Literário sobre memória e história:
A memória e a história em Navios Iluminados, de 30 de maio de 2006; e
A orelha do livro e um prêmio da Academia, de 23 de maio de 2006