Sexta, 26 Abril 2024

Em tempos de hipócrita discussão sobre a redução da maioridade penal, Porto Literário relê Querô – uma reportagem maldita, romance de Plínio Marcos publicado em 1976 que narra a história de um adolescente, Querô, que cresceu órfão pelas ruas em torno do cais do porto de Santos, sobrevivendo de bicos e pequenos crimes. Em O porto dos pequenos expedientes, o espaço mostrou o ambiente portuário em que se desenrola parte da história.

 

Como é comum na obra Plínio Marcos, o romance é conhecido por seu conteúdo de denúncia social e linguagem agressiva – os palavrões e expressões desagradáveis, ainda que escritas há mais de 30 anos, podem ser recolhidos às centenas nas 98 páginas do livro (algumas delas serão reproduzidas nas próximas linhas).


Maxwell Nascimento encarna Querô na adaptação para o cinema

 

Mas artista da palavra que era, Plínio Marcos sabia ou intuía que um conteúdo forte sem a devida estrutura narrativa não sobreviveria ao julgamento do tempo e se transformaria em coisa datada e documento literário sem expressão. Para que a história de Querô se mantivesse atual – como atesta a adaptação cinematográfica prestes a entrar em cartaz – Plínio Marcos acabou recorrendo a expedientes clássicos do ofício de contar histórias. Vamos a eles:

 

I

Antes de tudo, recordemos um dos inícios mais comentados e citados da história da literatura. É a frase inicial de Ana Karênina, um dos romances mais representativos do século XIX, publicado por Tolstói em 1877:

 

Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.

 

Agora, acompanhemos a frase de abertura de Querô – uma reportagem maldita:

 

Ou a gente nasce de bunda virada pra Lua, ou nasce cagado de arara. Não tem por onde. Assim é que é. Uns têm tudo logo de saída. Os outros só se estrepam.

 

Apesar das gritantes diferenças de estilo e vocabulário, as duas aberturas são estruturadas da mesma forma: há histórias de felicidade, de gente com a bunda virada para a lua; e há histórias de infelicidade, de gente cagada de arara. A função de cada uma das aberturas é de avisar o leitor sobre qual tipo de história ele terá pela frente – a desventura dos dois protagonistas – quase como um “era uma vez” às avessas. Isso sem contar que as duas obras trazem no título o nome de seus protagonistas.

 

II

Outra técnica narrativa aplicada por Plínio Marcos em Querô – uma reportagem maldita é o uso do leitmotiv (motivo condutor em alemão), isto é, uma ou mais imagens que se repetem ao longo da narrativa que sugerem determinada ação ou sentimento dos personagens. Nos momentos em que Querô se frustra – e são muitos – o personagem lembra do cheiro do perfume das prostitutas do puteiro onde cresceu e do gosto de sangue na boca deixado pelas surras que levava da mulher que o criou, a dona de um cabaré que levou sua mãe a beber querosene até a morte (daí o apelido do protagonista).

 

Quando o cheiro do perfume e o gosto de sangue surgem na narrativa o leitor sabe que o protagonista não sente nada mais além de raiva. Fiquemos na passagem em que Querô é levado pela polícia:

 

Pensar é doloroso. Pensar me dá gosto de sangue na boca. Me traz no nariz o cheiro de perfume que as putas da [Rua] Xavier [Silveira] usavam. Me dá desespero, sempre me deu.

Naqueles dias, na surda, eu ficava como louco. Os ratos andando de um canto pra outro da cela me atormentavam. Eu não tinha medo. Medo, eu não tinha. Tinha nojo e raiva. Uma raiva fudida que me fazia cagar na comida de porco que os tiras me empurravam pelo buraco-vigia. Uma raiva de fogo que me queimava a mufa, me deixava de cabeça gira, sem dormir nem um pouco. Só ali aceso. Ligado. Matutando. Querendo com todas as forças de querer uma chance de forra. De sair pra revanche com a filha da puta da Violeta [a dona do cabaré], aquela cadela podre e empestiada na cona e na alma, com o Tainha, aquela desgraçado que me entregou, com os tiras que me bateram, com o corno preto do crioulo Bolacha, com todo mundo. Cobrar de todos os filhos das putas a merda que me coube na vida.

 

III

Para terminar, um comentário sobre a voz narrativa. Dos dez capítulos do romance, os oito primeiros são narrados em primeira pessoa pelo protagonista. No nono capítulo, sabemos por que Querô nos conta sua história. Descobrimos que sua narrativa é um depoimento dado a um repórter, a quem chama de “do gibi”. No diálogo entre os dois, não há como ignorar a referência (premonitória, quem sabe?) ao comportamento atual da imprensa. Querô vê claramente que a função do noticiário policial é criar monstros para justificar o extermínio da juventude pobre brasileira:

 

Mas, porra, pra que tu quer saber essas merdas todas da puta da minha vida? Na bosta do teu jornal, eu tou fazendo e acontecendo. Sei como é que é. Olha, ô do gibi, não sou nenhum otário. Eu sei das coisas. No jornal, a gente pinta de perigosão. Matador. Fudido. Tu e os outros filhos da puta como tu preparam o presunto pros ratos [policiais corruptos] fritarem a gente.

 

O próprio repórter sabe da inutilidade daquilo tudo ali:

 

- Eu não sou tira, Querô. Sou jornalista.

- Então, pra que tu quer saber da minha vida?

- Queria te ajudar.

- Tu acha que pode?

- Acho que não.

 

No último capítulo, outra forma clássica é retomada por Plínio Marcos. Como é comum em alguns filmes que revelam o futuro dos personagens após o fim da história, o repórter assume a narração e nos revela o final da jornada de Jerônimo da Piedade, vulgo Querô.

 

Epílogo

Assim como Navios Iluminados, romance de identidade portuária que volta e meia aparece por aqui, podemos considerar Querô – uma reportagem maldita uma tragédia social. Tanto pelo que ocorre com o protagonista, mas também por um momento chave, sem o qual o personagem não chegaria a dar seu depoimento ao repórter.

 

Esse procedimento também vem dos clássicos e é bem comum em William Shakespeare, por exemplo, em peças como Romeu e Julieta e Hamlet. Na primeira, Julieta manda um emissário ao exílio de Romeu para avisá-lo de seu plano de passar por morta. Ao mesmo tempo, Romeu decide voltar para Verona, eles se desencontram no meio do caminho e ele não chega a conhecer as intenções da amada, o que desencadeia o final trágico.

 

Na tragédia do príncipe da Dinamarca, o momento sem retorno ocorre quando Hamlet tem a oportunidade de vingar seu pai ao encontrar o tio usurpador do trono em posição vulnerável e ao alcance de sua espada. Ao perceber que o tio tinha acabado de fazer suas orações e estava com os pecados redimidos, Hamlet desiste do assassinato – “ser ou não ser” – e, a partir daí, a carnificina final se torna inevitável.

 

Na obra de Plínio Marcos, a passagem crucial ocorre na segunda metade do livro, quando Querô passa a freqüentar um terreiro no Macuco, o bairro portuário da cidade. Lá é o único lugar em que o adolescente encontra um pouco de paz.

 

Em um dia, sem um tostão para o ônibus para ir das bandas do mercado municipal até o terreiro, Querô opta por tentar conseguir dinheiro na mesa de sinuca do bar Nau de Ouro, na zona portuária. Tudo sai errado e ele perde cinco partidas seguidas para Brandão, um valentão do cais. Brandão dá a Querô um dia para saldar a dívida, ou então ele o acharia em qualquer lugar e o arrebentaria de “porrada”.

 

Na saída do bar em direção ao cais do porto, na Rua Xavier da Silveira, Querô é abordado por dois policiais corruptos que acompanharam o episódio e oferecem proteção, isto é, a partir dali Querô teria que roubar para reunir a quantia exigida pelo “serviço”, além de atuar como dedo-duro na área do porto. Arrependido, Querô lamenta não ter ido a pé ao terreiro, mas já era tarde demais.

 

Depois de tentar se livrar dos dois “ratos” é que Querô acaba sendo entrevistado pelo repórter, encontro que, descobrimos no final, seria a matriz narrativa da história.

 

Referências:

Plínio Marcos. Querô – uma reportagem maldita. São Paulo. Edição do Autor (4ª edição, 1ª edição de 1976).

Leão Tolstói. Ana Karênina. São Paulo: Abril Cultural, 1971.
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