Especialista em políticas públicas, antropologia social e tecnologias digitais, o professor Jean Segata, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), nesta entrevista exclusiva ao Portogente, nos descortina um cenário de extrema relevância sobre o momento em que vivemos da pandemia do novo coronavírus, Covid-19.
Professor Jean Segata se dedica a pesquisas e estudos na area da saúde e da antropologia social. Fotos: Arquivo pessoal.
Para além das medidas necessárias, como a do isolamento social, por exemplo, Segata apresenta um universo científico importante para pensarmos “fora da caixa”, como diz adágio popular. São anos de pesquisa e dedicação para pensar como a humanidade segue em meio a um mundo cada vez mais complexo.
Nosso entrevistado já realizou pesquisas em diversas instituições públicas do País e de outros países, como no Centro Nacional de Diagnóstico e Investigação em Endemo-Epidemias (CEnDIE), do Ministério da Saúde da Argentina.
Atualmente, como líder do Grupo de Estudos Multiespécie, Microbiopolítica e Tecnossocialidade (GEMMTE) e coordenador do Núcleo de Estudos Animais, Ambientes e Tecnologias (NEAAT) da UFGRS, tem focado suas pesquisas em cibercultura e relações humano-animal.
É com toda essa experiência exemplar que Segata traz inúmeras questões desafiadoras para pensarmos em tempos de novo coronavírus, o papel da pesquisa científica e das ciências sociais, e lidar com a pandemia da desinformação, da fake news e da pós-verdade.
Professor, ao longo dos seus estudos sobre saúde, surtos, epidemias, pandemias, relação humanos e não-humanos, que diagnósticos trouxeram em relação às políticas públicas para a área epidemiológica e a saúde pública e coletiva? Apontam para quais estratégias no combate ao novo coronavírus (covid-19)?
Jean Segata – Um primeiro ponto é que meu interesse nesses campos das epidemias, dos surtos e pandemias tem a ver com uma intersecção entre os interesses da antropologia da ciência e as novas tecnologias digitais e as relações entre humanos e animais. Não são todos os tipos de epidemia e doenças infecciosas, mas aquelas que correlacionam/tensionam essa relação entre humanos e animais nos seus ambientes. Um tipo de convivência, contágio, afetividade e contaminação, entre saúde e doença e como esses entes partilham dos momentos de saúde e de doença. Isso leva a algumas consequências.
Se eu tivesse que fazer um diagnóstico a partir do meu trabalho sobre o que acompanho nas políticas públicas de saúde há ainda uma dificuldade muito grande de operacionalizar saúde como mediadora de relações entre humanos e animais e ambientes. A gente facciona a saúde humana, a animal e a ambiental. Não tem saúde como aquilo que compreende e media, unindo, contaminando e separando humanos, animais e ambientes. Eu tento pensar a saúde e a doença como algo partilhado.
Saúde e doença partilhadas?
Tenho percebido que nesse campo que envolve contaminações há sempre uma ideia de que a natureza é perigosa, que é externa à vida humana e social, e que os animais sendo seres da natureza oferecem algum risco e perigo. Há uma certa exceção humana, a ideia de que estamos fora da caixa da natureza, que nos relacionamos com ela quando queremos, para nosso favor, nosso proveito, a gente trata ela como um recurso, tenta controlar a natureza - e nesse pacote entram os animais, os vírus, as bactérias etc. Mas, às vezes, as coisas escapam e a gente se dá conta que não está no controle de tudo nesse mundo.
Esse fetiche humano, sobretudo masculino e capitalista, de ter tudo sob seu controle e sua servidão, não funciona. Ou pelo menos não funciona com todos os entes que compõem o planeta. Os mosquitos, que tenho pesquisado há muito tempo, resistem às ações humanas, às políticas de controle, ao glifosato, às tentativas de extermínio deles. Os vírus é a mesma coisa. E isso é um incômodo, pois nos coloca na sensação de incerteza, de que não podemos tudo.
Como assim, o ser humano não pode tudo?
Tenho tentado mostrar que nós humanos não somos uma exceção, mas que estamos no mundo como os outros entes, numa relação política de que cada um possa ter seu espaço, só que a gente às vezes quer os espaços do outro e aí as coisas não dão certo, e a gente acaba se complicando, se contaminando. Isso aparece em outras dimensões, como há um mês, quando o Sudeste estava alagando e a gente dizendo ‘a natureza é implacável, está levando vidas, é descontrolada etc.’, como se a gente não tivesse implicação nenhuma na produção desses fenômenos que chamamos de naturais.
Não são fenômenos naturais, mas sim tragédias humanas provocadas pela gente, são ambientes e fenômenos que ajudamos a construir.
A natureza, fenômenos ambientais, vírus, bactérias, não estão numa outra esfera, num outro universo que não outro em que a gente vive e partilha. A gente tem dificuldade de pensar políticas públicas para além desse excepcionalismo humano. De pensar a saúde como mediadora da relação com outros seres. É claro que a gente tenta se defender, proteger os nossos, mas animais também morrem pelos mesmos vírus que nós morremos, então não é um jogo de algoz e vítima, e sim uma situação em que todos estamos suscetíveis a viver bem coletivamente, quanto adoecer coletivamente.
E como as tecnologias digitais, que você estuda também, se relacionam com esse universo apresentado aqui?
O segundo ponto que me interessa nas políticas públicas de saúde tem a ver com tecnologias digitais. Meu foco tem sido o emprego high tech do sistema de mineração de dados, de algoritmos que organizam informações da epidemiologia e outras áreas, como incidência de mosquitos, criação de cenários de risco, mapas de contaminação, outras tecnologias, como as da vida, modificação genética de mosquitos e outros vetores, o mapeamento viral feito por meio do DNA.
Especialmente por que isso promove uma espécie de passagem das políticas de prevenção para políticas de predição. Há uma promessa dessas tecnologias digitais de uma ubiquidade [capacidade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo], de conseguir enxergar tudo, de ter dados precisos, de antever situações, de predizer futuros, de prever um período de epidemia. Por outro lado é curioso por que contrasta com esse cenário de incertezas em que vivemos.
Quando perguntaram ao Ministro da Saúde, o [Luiz Henrique] Mandetta, na semana passada, como seria o desenvolvimento da covid-19 no Brasil, ele olhou simplesmente e disse “olha não temos bola de cristal”. Pensei que é aí que as políticas públicas super high techs, empoderadas por programas de inteligência de saúde que são vendidos hoje, há um poderoso capitalismo da saúde que vende esses pacotes da inteligência, que são usados como ferramentas para gerenciamento da política pública, e que prometem a antecipação, a predição, preparação e resposta e tempo real.
Há uma contradição entre o uso potente de tecnologias e decisões, critica o pesquisador.
Sabe aquela fantasia tecnocrática do tempo real, na hora, tudo vê, antecipa. Só que quando os problemas estão instalados, não sabem o que está acontecendo. Ou seja, há uma distância entre o que é produzido enquanto uma realidade que é modulada por esses algoritmos, e uma realidade que é vivida, que exige ações e tomada de decisão. Aliás, não adianta produzir tanta informação e ter uma equipe inepta, um governo e um presidente ineptos, que não tomam uma decisão baseada em fatos e evidências. Há uma ambivalência muito grande entre o uso potente de tecnologias que prometem a precisão, com esses cenários de incerteza, de bagunça metodológica, de falta de ações concretas para a contenção de um evento epidêmico como esse.
Num cenário globalizado, em que estamos conectados em tempo real, longe e perto, o que você acredita que produz de novas subjetividades e como a agência dos algoritmos da internet impactam na produção de um pânico sobre a Covid-19?
Essa pergunta é ótima. Além do que te dizia, primeiro essas tecnologias digitais elas em si produzem informações que são convertidas em dados e que muitas vezes são borradas ou tendenciosas. Certas informações locais são convertidas em dados, que são convertidos em escalas globais e uma escala global sempre tende a fingir uma ideia de universalidade. Esses sistemas de monitoramento eletrônico tendem a extrair de contextos informações que deveriam ser contextualizas e ao fazer isso, são produzidas informações que não têm rosto, identidade, situação, e isso em si já é um perigo.
Quando vamos para um cenário mais amplo, aonde o tipo de agência que tem algoritmos na conformação de redes sociais, de resultados de busca, no Google e outras ferramentas certamente provocam entendimentos que são distorcidos. As pessoas tendem a fazer circular o medo por meio disso, como o fato de que aconteceu tantos casos na Itália, então é um perigo aqui na nossa vizinhança.
É claro que potencialmente isso pode acontecer, mas as pessoas pulam esses contextos por que a informação está aqui com elas, mas tem uma coisa que é bem pior nesse contexto da conexão em tempo real, que é a desinformação. Que é essa máquina de produção de fake news, onde as notícias falsas se espalham muito mais rápidas que os vírus e têm efeitos muito mais nocivos do que eles.
A desinformação é outra doença que temos hoje. A gente vive uma pandemia de desinformação, uma pandemia de pós-verdade. Há dias eu tentava convencer uns conhecidos de escola de que a Terra não é plana. Parece trivial falar nisso, mas como você quer lidar com uma pandemia se ainda precisa convencer de que a Terra não é plana? Com as desinformações que a incompetência travestida de presidente exalta em cada um dos pronunciamentos? Então esse é um desafio muito grande que a gente tem: lidar com a pandemia da desinformação, da fake news e da pós-verdade.