Jorge Martins Secall é consultor especializado em sistemas ferroviários
Da mesma forma que conceitos estão sendo transformados pela nossa atual era da informação, mobilidade deixou de ser uma terminologia técnica e se tornou necessidade essencial da sociedade, seja na locomoção de pessoas ou de coisas.
Isso está no cerne da discussão que propomos: a maior preocupação das pessoas pode ser resumida no conceito de transporte porta a porta: Quanto levarei da cadeira em minha casa até a minha cadeira no escritório? Este tempo é previsível? Confiável? Quanto tempo levará o produto que acabei de comprar na internet para estar em minhas mãos?
Nos tempos atuais as pessoas demandam rastreamento e previsibilidade. Onde está meu produto agora. Onde está o ônibus ou o trem que vou tomar agora? Como está o tráfego em meu caminho agora? A sociedade da informação em que vivemos demanda respostas pragmáticas e, fundamentalmente, rápidas.
Por outro lado os técnicos, imersos em suas tecnicalidades, têm a tendência de defender seus pontos de vista como ideias únicas. Somos frequentemente inundados com debates acalorados do tipo o BRT é melhor do que o metrô, ou os VLTs é que funcionam e os monotrilhos são uma experiência para parques de diversões. Discussões que não logram sucesso no lugar comum, nem na engenharia.
Para conduzir o raciocínio de aqui por diante vamos assumir que, em seus fundamentos, a logística de cargas e o deslocamento de pessoas sejam situações análogas. Isso posto, há duas maneiras distintas de considerar sistemas de transportes: uma é a demanda reativa e a outra é a demanda induzida.
Na ação reativa as pessoas e os bens já estão em seus lugares e as necessidades de deslocamento podem ser mapeadas. Para passageiros realizam-se as pesquisas de origem-destino. Para as mercadorias, sejam commodities ou cargas gerais, estabelecem-se centros de atração e se avaliam suas capacidades de captação.
A partir desses dados são estabelecidas as demandas esperadas e é possível fazer projeções temporais com elas, em horizontes pré-estabelecidos. Uma vez conhecidas as demandas é possível dimensionar sistemas de transporte capazes de atendê-las e, só nesse momento, eleger os mais adequados. Uma vez escolhido o modelo físico é que passa a fazer sentido escolher entre os diversos modais possíveis.
Se a demanda projetada é de 60 mil passageiros/hora/sentido há poucas situações que não demandem uma linha de metrô pesado. Demandas inferiores a dois ou três mil passageiros por hora/sentido podem perfeitamente ser atendidas por peruas, micro-ônibus, carros particulares ou bicicletas. Cada modal tem espaço na matriz de transporte, se esta for cuidadosamente planejada.
Na logística de cargas as ferrovias, hidrovias, navegação de cabotagem ou simples caminhões também têm todos o seu espaço dentro de um planejamento adequado. Entretanto, não há sentido algum em transportar eletrodomésticos fabricados no Paraná para o Ceará em pequenos caminhões. Nem em fazer um trem de alta velocidade entre São Paulo e Campinas.
Guardadas as proporções, esses sistemas reativos têm sido utilizados historicamente no Brasil com relativo sucesso. Sua maior deficiência talvez esteja na consideração sempre muito primitiva das demandas induzidas, aquelas produzidas pelo próprio sistema de transporte.
Por exemplo, se um trem intercidades for concebido conectando o metrô de metrópoles como São Paulo ou o Rio – polos de atração de trabalho – aos subúrbios distantes, com boa qualidade de vida, há uma importante possibilidade de que pessoas se mudem para essas áreas em busca de melhores condições para viver. Assim, se uma ferrovia de carga for implantada em área de produção rural é provável que produtores se mudem para lá em busca de condições mais adequadas para o escoamento de seus produtos.
A conclusão a que se chega, e que tem sido esquecida pelos planejadores de transporte do nosso País, é a de que se os vetores de transporte têm a capacidade de induzir modificações no ambiente, estes podem, ao mesmo tempo, a ser usados como vetores de indução do planejamento organizado dos municípios, dos estados e do País.
O uso inteligente do transporte permite, no médio e longo prazo, soluções como centros de trabalho e de moradia onde não há nada, conectados por uma linha de metrô, por exemplo. Pessoas e empresas serão atraídas para esses polos e serão criados bolsões de desenvolvimento coordenado e sustentável. Na logística de mercadorias o raciocínio é o mesmo.
As reações das pessoas e da cadeia logística são motivadas exclusivamente pela disponibilização de meios capazes de fazer a vida mais lógica, organizada e sustentável. Essas situações são inevitavelmente mais baratas no custo ponderado, e este é outro fator fundamental na motivação dos processos migratórios.
Não resta dúvida de que o emprego correto e organizado desses mecanismos pode levar à transformação efetiva dos espaços, induzindo o desenvolvimento e o planejamento sustentado, e o futuro trará certamente maiores transformações nos espaços.
Não é preciso um grande exercício de reflexão para entender que é isso o que deseja uma sociedade que considera com naturalidade a introdução de veículos autônomos como os da Google ou Uber no horizonte alcançável por todos nós.
Se o conservadorismo não for abandonado no planejamento e no projeto dos meios de transporte estes serão ultrapassados por visões modernas, muito mais centradas nas necessidades das pessoas do que nos meios em si mesmos.