Quinta, 06 Novembro 2025
Opinião | Renata Santana 
Jornalista, estrategista digital e especialista em tecnologia

Renata Santana

O Brasil adora repetir que “o futuro chegou”. E chega mesmo, mas sempre pela metade. Essa semana foi veiculado na mídia a nova aposta da Renault: Renault Kwid E-Tech. Com design inspirado no modelo europeu e recursos inéditos de segurança, a nova aposta do Grupo Francês está prevista para ser lançada em 2026 e promete ser o carro elétrico mais barato do Brasil, custando R$ 99.990.

A discussão sobre carros elétricos baratos é o exemplo perfeito dessa ilusão tecnológica que cultivamos: celebramos avanços sem perguntar se eles realmente fazem sentido na vida real do brasileiro comum. Hoje, fala-se muito sobre o “carro elétrico acessível”, mas o que temos, de fato, é uma ideia sedutora cercada por uma realidade desconfortável: a real é que não estamos prontos para essa revolução e fingimos que estamos.

O “popular” brasileiro custa R$ 100 mil. Popular para quem? Vamos começar pelo óbvio: o carro elétrico mais barato do Brasil custa algo em torno de R$ 100 mil. Chamar isso de “popular” é quase um insulto ao trabalhador brasileiro que faz malabarismo para pagar 60 parcelas de um carro a combustão básico.

A propaganda tenta nos convencer de que estamos vivendo um momento histórico. “Eletrificação acessível”, “mobilidade inteligente”, “futuro limpo”. Mas, no chão de fábrica e no bolso das famílias o impacto é mínimo. É tecnologia de elite, com discurso de inclusão.

Enquanto isso, países que lideram essa corrida colocam em circulação modelos realmente populares, alguns custando o equivalente a R$ 60 mil. Aqui, seguimos celebrando importações caras e promessas de montadoras que falam mais do que entregam.

Montadoras prometem. Governo oscila. Consumidor desconfia.

A indústria automotiva brasileira vive de anúncios. Todo mês surge uma nova promessa: marca chinesa chegando, modelo mais barato em breve, expansão da frota elétrica. Mas tudo fica na teoria: datas incertas, preços indefinidos, dependência de importação.

É como se estivéssemos sempre “quase lá”, mas nunca exatamente lá.

E enquanto as montadoras fazem marketing, o governo oscila. Um dia incentiva a eletrificação, no outro aumenta imposto. Um dia anuncia linhas de crédito verdes, no outro corta subsídios. Fica difícil acreditar em qualquer projeto de longo prazo num ambiente onde as regras mudam ao sabor do vento político. 💸 O consumidor percebe isso. E se afasta. Não por resistência ao novo, mas por inteligência prática: ninguém quer comprar um carro cujo custo de recarga muda a cada bandeira tarifária e cuja autonomia depende da sorte de encontrar um ponto de recarga funcionando.

Infraestrutura: o verdadeiro gargalo que ninguém quer admitir

Falar de carro elétrico barato sem falar de infraestrutura é como prometer piscina olímpica para quem mora em kitnet. Não faz sentido.

O Brasil tem:

  • poucos pontos de recarga;
  • concentração extrema nas regiões Sul e Sudeste;
  • pouquíssima capilaridade em cidades médias;
  • quase nenhum incentivo para empresas instalarem carregadores;
  • um dos custos de energia mais altos do continente.

Então, mesmo que amanhã aparecesse um carro elétrico por R$ 70 mil, a pergunta continuaria sendo: onde exatamente ele será carregado?

A resposta é simples e preocupante: na casa de poucos? Nos shoppings dos grandes centros? Nas avenidas principais de bairros nobres? Não há democratização enquanto a infraestrutura continua elitizada.

O Brasil vive um conflito silencioso: Etanol x eletrificação

Existe outra camada dessa discussão que quase ninguém comenta: o Brasil já tem um combustível limpo, viável, barato e amplamente distribuído: o etanol.

Em vez de escolher um caminho, o país fica preso no meio-termo. Quer apostar no elétrico “para não ficar para trás”, mas não quer abrir mão do etanol “porque ele funciona”. O resultado é uma política ambígua, que não constrói nem uma indústria elétrica robusta, nem uma revolução baseada em biocombustível.

Enquanto o Brasil hesita, a China avança como líder mundial. Enquanto debatemos se vale a pena ou não, a Europa define cronogramas rígidos de proibição de motores a combustão. Enquanto esperamos os preços caírem, os Estados Unidos injetam bilhões para popularizar o elétrico. O fato é que a indecisão tem custo — e nós estamos pagando.

Ainda estamos discutindo carros quando deveríamos discutir cidades

Essa talvez seja a parte mais preocupante: o debate brasileiro sobre mobilidade elétrica é superficial. Falamos de carros, preços, autonomia. Mas esquecemos que mobilidade é projeto de cidade, não vitrine de concessionária.

Carro elétrico barato sem cidade preparada é como um smartphone novo sem internet. Funciona, mas não cumpre seu propósito. A verdadeira transformação deveria envolver:

  • planejamento urbano inteligente;
  • corredores de recarga;
  • expansão energética limpa;
  • políticas coordenadas entre municípios, estados e União;
  • produção nacional de baterias;
  • estratégias de reciclagem de materiais.

Mas isso exige visão, coordenação e continuidade. E o Brasil, historicamente, não é conhecido por nenhuma dessas três qualidades.

O Brasil pode liderar, mas só se parar de esperar o futuro cair do céu

A grande ironia é que o Brasil tem tudo para liderar a mobilidade limpa no mundo: matriz energética renovável, domínio do etanol, indústria automotiva gigantesca, potencial de produção de lítio e uma população jovem que se adapta rápido a novas tecnologias.

Mas liderança não surge do acaso. Ela exige planejamento e coragem.

Enquanto ficamos esperando por um “carro elétrico barato milagroso”, a revolução corre o risco de acontecer sem nós. Não porque não tenhamos tecnologia, mas porque insistimos em tratar o futuro como espetáculo, não como política pública.

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Conclusão: O barato que ainda sai caro

Um carro elétrico realmente barato poderia mudar a mobilidade brasileira. Mas, até agora, o que temos é mais slogan do que solução. Mais fantasia do que futuro.

O dia em que o Brasil tiver coragem de assumir uma direção clara — elétrica, híbrida, etanol ou tudo isso junto — será o dia em que deixaremos de correr atrás do mundo e começaremos a correr ao lado dele.

Leia também: Seremos substituídos por robôs?

Até lá, continuaremos olhando para anúncios de “carros elétricos populares” com a mesma sensação: parece futuro, mas ainda não é.



Renata Santana 
Jornalista, estrategista digital e especialista em tecnologia

 

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