Sexta, 22 Novembro 2024

Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais

Em toda negociação comercial, os países participantes têm interesses ofensivos, normalmente vinculados aos seus setores produtivos mais competitivos, e interesses defensivos, relacionados aos seus setores econômicos mais frágeis e que precisam de proteção para se desenvolver. A partir da definição desses interesses, monta-se a estratégia de negociação, que usualmente procura maximizar os ganhos dos interesses ofensivos, minimizando, ao mesmo tempo, as perdas em seus interesses defensivos.

No caso específico das negociações Mercosul-União Europeia, os interesses ofensivos do bloco econômico europeu estão concentrados em produtos industrializados (conhecidos, no jargão da OMC, por NAMA-non agricultural market acess), serviços (especialmente serviços tecnologicamente mais sofisticados, como telecomunicações, serviços financeiros, serviços de transporte-navegação de cabotagem, serviços ambientais e de consultoria etc.), propriedade intelectual (com vistas a impor regras mais rígidas do que as já acordadas na OMC- o chamado TRIPS plus), compras governamentais (com o intuito de abrir esse importante mercado para as empresas europeias) e investimentos (com o objetivo de proteger investimentos europeus no Mercosul mediante regras que criam privilégios para o investidor).

No que tange aos interesses defensivos da UE, eles estão concentrados essencialmente em agricultura. A União Europeia, pressionada principalmente pela França, quer preservar, sem mudanças significativas, a sua política agrícola e de segurança alimentar, baseada não apenas em barreiras aduaneiras e não-aduaneiras às importações, mas também numa montanha de subsídios à agricultura que tornam os produtos agrícolas europeus artificialmente competitivos. Somente a Política Agrícola Comum (PAC) disponibiliza, todos os anos, cerca de 60 bilhões de euros para os agricultores europeus, em subsídios diretos, consumindo 40% do orçamento comunitário. Isso sem falar dos apoios indiretos, como o crédito facilitado, e os subsídios concedidos em âmbito nacional.

A UE também tem interesses defensivos em matéria sanitária e fitossanitária (de modo a poder manter barreiras técnicas a produtos agrícolas) e antidumping (de forma a impor barreiras contra produtos industrializados com preços muito baixos).

O Mercosul, sob a liderança do Brasil, tem, por sua vez, interesses ofensivos claros em agricultura, já que seus membros são muito competitivos nessa área, em certos setores de serviços (no chamado modo 4-transfronteiriço-, que são os serviços prestados com exportação de mão de obra) em alguns produtos industrializados (aço, alimentos processados, etanol, têxteis, aviões, etc.), em antidumping (queremos regras mais claras e rigorosas para a sua aplicação) e medidas sanitárias e fitossanitárias (idem).

Em relação aos interesses defensivos do Mercosul eles estão concentrados em setores estratégicos dos serviços (serviços financeiros, por exemplo, essenciais para não aprofundar a vulnerabilidade da economia), certos setores industriais (informática, automóveis, química e petroquímica etc.), propriedade intelectual (de modo a não prejudicar o nosso desenvolvimento tecnológico e a não comprometer certas políticas públicas, como a do combate à AIDS, por exemplo), compras governamentais (já que elas são importantes para estimular a produção nacional- no caso das compras da União -, regional- no caso das compras dos estados-, e local- no caso das compras municipais) e investimentos (para não criar privilégios para o investidor estrangeiro e comprometer políticas de desenvolvimento).

As negociações Mercosul-UE começaram oficialmente em 1999, mas até agora não foi possível se chegar a um acordo abrangente e significativo. Elas ficaram paralisadas entre 2004 e 2010, uma vez que a distância entre as propostas era muito grande. Entretanto, em 2010 elas foram oficialmente retomadas por pressão da União Europeia, a qual, na época, estava sendo muito afetada pela recessão e buscava compensar a diminuição de seu mercado interno com o aumento de suas exportações.

O Mercosul, liderado pelo Brasil, fez ofertas em compras governamentais (abrindo a possibilidade de preferência para empresas europeias, preservadas as políticas de estímulo à produção nacional), NAMA (com concessões em cerca de 90% da pauta importadora, preservando, no entanto, setores considerados estratégicos) e mesmo em certos setores de serviços (como seguro bancário, ligações internacionais, serviços profissionais especializados, etc.).

A União Europeia, por sua vez, admitiu aumentar quotas de importação para certos produtos, como carnes e etanol. No entanto, a União Europeia se negou a fazer concessões significativas naqueles setores que mais interessam ao Mercosul e ao Brasil, como barreiras não-tarifárias a produtos agrícolas e industriais e, acima de tudo, subsídios à agricultura, os quais não apenas impedem a penetração de nossos produtos agrícolas no mercado europeu, como dificultam também a venda desses produtos em outros mercados, já que a União Europeia é grande exportadora de commodities agrícolas subsidiadas.

A estratégia da União Europeia é de só negociar esses assuntos (chamados de “temas sistêmicos”, em jargão técnico) na OMC. Contudo, as ofertas que a UE fez na OMC sobre subsídios agrícolas foram pífias, e decepcionaram, até agora, os países em desenvolvimento.

Essa atitude da UE vem impedindo a consecução de um acordo abrangente, no âmbito das negociações com o Mercosul. Com efeito, sem concessões significativas em subsídios agrícolas e barreiras não-tarifárias por parte da UE, um acordo com o Mercosul poderia resultar em sérias assimetrias e desequilíbrios para os nossos países. Deve-se ter em mente o que aconteceu com o México, que firmou um acordo de livre comércio com a UE, em 1999. As assimetrias consolidadas nesse acordo acabaram por duplicar o déficit comercial que o México tinha com a União Europeia. Coisa semelhante aconteceu com Peru, Colômbia, Equador, que também passaram a ter largos déficits em sua relação comercial com a UE, após entrarem em vigor acordos de liberação comercial.

Observe-se que, nos últimos 5 anos (2013-2017), o Brasil acumulou um déficit comercial com a UE de US$ 5,2 bilhões. Nesse período, só tivemos superávits em 2016 e 2017. Contudo, esses superávits recentes não foram ocasionados pelo aumento de nossas exportações para o bloco europeu, já que elas caíram de US$ 47,8 bilhões, em 2013, para US$ 34,9 bilhões, em 2017. Na realidade, esses superávits recentes foram causados pela queda brutal das nossas importações, devido à forte recessão brasileira. Com efeito, as nossas importações da UE desabaram de US$ 50,7 bilhões, em 2013, para meros US$ 32 bilhões, em 2017. Assim sendo, a assinatura de um acordo assimétrico poderá ampliar o desequilíbrio estrutural entre economias que estão em um estágio diferente, em seu nível de desenvolvimento.

Nos últimos tempos, tem crescido o receio de que o Brasil e o Mercosul acabem por concordar com um tratado comercial desequilibrado. Isso por três razões. A primeira se relaciona com a crescente desnacionalização da nossa indústria. Hoje, os setores mais poderosos da indústria instalada no Brasil, como a automobilística, por exemplo, já são bastante internacionalizados. Ao contrário do que acontecia no passado, esses setores são agora favoráveis a um acordo que permita a livre importação de insumos industrializados que diminuam seus custos, como motores, componentes eletrônicos etc. Por esse motivo, a Fiesp mudou de posição relativamente ao acordo com a UE e agora defende regras comerciais mais liberais para a indústria.

Já a segunda razão tange ao fator político e ideológico. O golpe é neoliberal até a medula e acredita que a adesão apressada do Brasil a acordos comerciais amplos e de “nova geração” poderá fazer com que o país retome seu crescimento, compensando a contração recente de seu mercado interno. Trata-se, do nosso ponto de vista, de uma aposta ingênua e suicida que não tem qualquer base empírica. A bem da verdade, o que a história econômica mostra é que todos os grandes países praticaram políticas protecionistas, principalmente para proteger a sua indústria nascente. Tais políticas só foram parcialmente flexibilizadas quando esses países adquiriram níveis muito altos de competitividade internacional.

Mesmo hoje, os países desenvolvidos e industrializados continuam a proteger seus setores industriais mais frágeis e sensíveis. Isso sem falar de seu setor agrícola fortemente subsidiado. Considere-se que, nos últimos tempos, ocorreu mudança considerável nas políticas comerciais de vários países, que passaram a ser consideravelmente mais protecionistas. É o caso óbvio dos EUA, sob a administração Trump. Recentemente, esse governo anunciou sobretaxas ao aço (25%) e ao alumínio (10%), a revelia do que dispõe a OMC, o que prejudicará muito a siderurgia brasileira, que exporta 30% de sua produção para lá. Na Europa, ocorre o mesmo fenômeno. A saída da Grã-Bretanha da UE (Brexit) se insere na mesma tendência de nacionalismo e protecionismo.

Por conseguinte, essa aposta ingênua do golpe numa liberação comercial acrítica e unilateral coloca o Brasil na contramão da tendência mundial.

A terceira razão diz respeito ao fato inquietante de que as negociações, consolidado o golpe no Brasil, se aceleraram e passaram a ser realizadas sob um manto de inexplicável sigilo. Nada é divulgado. Surgem apenas, aqui e ali, especulações sobre o que vem sendo efetivamente negociado. Isso não aconteceu sequer no caso das negociações da finada ALCA, as quais foram bem mais transparentes. Tal fato impede análises precisas sobre as possíveis consequências do acordo para a estrutura produtiva nacional e os empregos dos brasileiros. Face às novas políticas internas neoliberais e à nova política externa “omissa e submissa”, teme-se que esse acordo com a UE possa ser usado para blindar as escolhas políticas do golpe.

Com efeito, não há maneira mais eficiente de blindar políticas do que plasmá-las em tratados internacionais.Torna-se muito difícil modificá-las, uma vez que se tornam compromissos internacionais. O caso do México, que assinou cerca de 30 acordos de livre comércio, além do NAFTA, é exemplar a esse respeito. Nos primeiros 10 anos deste século, o PIB per capita (PPP) do México cresceu apenas 12%, ao passo que o do Brasil cresceu 28%. Hoje em dia, aquele país tem 51% da sua população abaixo da linha da pobreza, enquanto que o Brasil conseguiu reduzir essa porcentagem para 15,9%. Hoje, esse país tem imensas dificuldades de implantar políticas de desenvolvimento, industriais e de ciência e tecnologia, em função das cláusulas dos acordos assinados.

Nesse contexto internacional e nacional, e sob essas condições de negociações, a possibilidade de um bom acordo, simétrico e que proteja nossa indústria gravemente combalida, parece ser remota. A revisão significativa da Política Agrícola Comum (PAC) da UE, em particular, parece estar fora do escopo da negociação. Não se trata apenas de uma questão de segurança alimentar e de proteção a setores “sensíveis”, mas também de uma questão com fortes implicações políticas. É que em muitos países europeus, como na França, por exemplo, o voto distrital do interior, vinculado às atividades agrícolas, tem um peso muito grande para certos partidos políticos conservadores. Assim, modificar a PAC significaria erodir a base de sustentação desses partidos.

Obviamente, um eventual acordo entre o Mercosul e a União Europeia teria de ser enviado ao Congresso Nacional para aprovação, nos termos do artigo 49, inciso I, da Constituição Federal. Contudo, julgamos imprescindível que os parlamentares, especialmente aqueles ligados ao Mercosul, bem como os representantes da sociedade civil, façam um esforço fiscalizador para avaliar o negociado antes da conclusão do acordo, de forma a analisar as suas consequências e fazer recomendações aos nossos negociadores. Ressalte-se que, uma vez concluído e assinado, será muito difícil articular a rejeição do acordo, no Congresso Nacional.

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