Segunda, 25 Novembro 2024

Portogente conversou com o professor titular no Departamento de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Ladislau Dowbor, formado em economia política pela Universidade de Lausanne (Suiça), doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia (Polônia).

Ladislau DowborLadislau Dowbor indica medidas urgentes para que o Brasil supere
as consequências da pandemia Covid-19. Crédito: arquivo pessoal.

Na sua trajetória foi consultor da Organização das Nações Unidas (ONU), onde continua com o trabalho de consultoria para diversas agências, além de governos e municípios. É autor de mais de 40 livros, entre eles o Mosaico Partido – a economia além das equações, A Era do Capital Improdutivo, Pedagogia da Economia.

Diante do cenário brasileiro e internacional de enfrentamento à pandemia do novo coronavírus (covid-19), Dowbor propõe a criação de uma renda mínima para a população brasileira mais vulnerável, a revitalização do SUS com a suspensão do teto de gastos, a taxação das grandes fortunas (isentas de impostos sobre o capital improdutivo), e a criação de conselhos locais e nacionais de gestão da crise. “Minha experiência de vida incluí sete anos em África, vi gente morrendo de verdade, de miséria e de cólera, e quero trazer nesse momento uma contribuição que ajude o País a superar o mais rapidamente possível esse desafio”, afirma.

O planeta vive um momento de enfrentamento ao novo coronavírus (Covid-19). O que se destaca nesse cenário é o conflito saúde x economia. Como o senhor analisa esse cenário?
Ladislau Dowbor - O impacto no Brasil é que nós temos uma crise resistente, que é a paralisia da economia, praticamente desde 2014, quando os banqueiros assumiram o processo decisório na área econômica e tivemos uma recessão em 2015 (-3,5% do PIB), outra recessão em 2016 (-3,3% do PIB) e desde então estamos com um crescimento da ordem de 1% ao ano, que descontando crescimento demográfico, na realidade a economia está totalmente parada. Em 2020 nossa economia está no nível que estava em 2012, o que significa uma paralisia econômica. O segundo fator, é que estamos, resultado de uma herança estrutural também crítica, numa profunda desigualdade de renda, de emprego, de riqueza, que também paralisa a economia. Estamos entre os 10 países mais desiguais do planeta, com seis famílias que detém mais riqueza acumulada do que a metade mais pobre da população de 105 milhões de pessoas. O novo coronavírus chega através das pessoas que viajaram para a Europa, gente que pertence às elites, se espraia em algumas cidades, mas vai chegar na massa da população que não tem como se isolar, ficar só no computador, ou coisa do gênero. A massa das grandes periferias das cidades, é só imaginar quando se generalizar o coronavírus nessa área. Estamos frente a um desastre em que tempos que simultaneamente enfrentar a pandemia, mas em condições de profundo desajuste econômico, tanto pela desigualdade, como pela paralisia econômica.

Eu acrescentaria a isso o fato de que nós praticamente não temos governo nesse país. Temos bate-boca, declarações de violência, por parte do Ministro Guedes a política econômica do país está centrada em entregar para o exterior o petróleo, a Embraer, o acesso à madeira e às riquezas da Amazônia, mas nada de efetivo em termos de retomada do desenvolvimento do Brasil.

A gente junta esses elementos que leva a uma extrema dificuldade de enfrentar o coronavírus. No mínimo nós precisaríamos ter um conselho nacional de crise, juntando cientistas, políticos, sistema de financiamento para criar uma política integrada de enfrentamento da crise, mas a meu ver nós simultaneamente teremos que enfrentar esse problema da desigualdade, que é o pano de fundo para outro capítulo que muita gente está começando a pensar como frente a esses desafios vamos continuar com o processo de sempre?

Cada vez mais, dentro da lógica do ultra liberalismo, os Estados-nação priorizam os investimentos de acordo com os interesses do mercado e saindo ou cortando investimentos em áreas, como saúde, ciência, educação, todas com viés social. Como o senhor avalia o impacto desse processo para enfrentar econômica e socialmente a emergência da pandemia?
Nós no Brasil, com a lei do teto de gastos e redução do financiamento do SUS, redução dos direitos trabalhistas, a fragilização do Bolsa Família e das aposentadorias, com a nova Lei da Previdência, torna ainda mais vulnerável a grande massa da população. O SUS é a única estrutura que pode ajudar a gente realmente a enfrentar a dimensão de saúde dessa crise. O ataque aos SUS por parte das elites é compreensível, pois eles têm o plano de saúde, podem se tratar no Einstein, eles não vêm necessidade no SUS. Só que a fragilização do SUS vai generalizar muito mais rapidamente a epidemia, e o vírus não foram informados de quem tem plano de saúde e de quem tem SUS. Então de repente isso está voltando para eles, que daí lembraram do SUS. Essa transformação é muito importante porque coloca na mesa de volta um problema básico: o mercado não funciona para as áreas de saúde, educação, segurança, políticas sociais, etc.

O mercado, quando entra nessas áreas, leva a indústria da doença, do diploma, milícias. Faltam políticas adequadas. É muito interessante você observar o Macron [presidente da França], em declarações na televisão francesa, dizendo que as políticas sociais são necessidades básicas para a população e não se regula adequadamente pelo mercado. Uma coisa é enfrentar o vírus e outra é enfrentar a forma de organização social que permite esse enfrentamento, o que nos leva para uma outra visão da política, como reduzir a desigualdade, assegurar renda básica generalizada para a população, congelar o pagamento das dívidas, organizar o apoio aos municípios, que efetivamente atuam no nível local, ondes está a população vulnerável, fazer uma reconversão produtiva (produzir máscaras, ventiladores de respiração para salvar pessoas). Ou seja, precisamos de uma política nacional de enfrentamento da crise, e isso não está sendo feito. A única coisa que está sendo feito é dizer para as pessoas 'fiquem em casa'. Mas você não vai ficar em casa se precisa ganhar a vida, se não tem a distribuição de renda. O governo mandar R$ 200,00 para as famílias é um ataque à inteligência humana.

600 Corona PacaembuEstrutura emergencial montada no estádio paulista Pacaembu. Crédito: Fotos Pblicas | @AllegraPacaembu.

E como se produz essa desigualdade e como reduzi-la?
O outro pano de fundo é o seguinte. Recentemente saíram os dados sobre os bilionários no Brasil, divulgados na Revista Forbes. Em 2012, eram 74 bilionários que acumulavam 346 bilhões de reais de riqueza. Em 2019, são 206 bilionários que detém um 1,206 bilhões de reais. Entre março de 2018 e março de 2019 eles aumentaram suas fortunas em 230 bilhões. E ai falam em mandar R$ 200,00 para as famílias. E essas fortunas imensas são essencialmente improdutivas, foram acumuladas na especulação financeira, em juros, não de investimento na produção. Além disso, essas grandes fortunas estão isentas de imposto. Eu, professor Ladislaw, pago 27,5%, deduzido do meu salário e declarado. Essa gente não paga imposto desde 1995, quando foi criada a Lei de que lucros e dividendos distribuídos são isentos. Na realidade nós temos os recursos, só que precisam ser reconvertidos para enfrentar a crise, o SUS tem que voltar a ser valorizado e grande parte desses recursos precisam financiar a generalização das políticas frente a uma crise como esta, pois somos apenas seres humanos, todos nós.

É preciso reconverter também a organização das políticas sociais. É tanta a ausência de governo central que os governadores se reuniram para se organizar uma política entre eles. Isso não será suficiente, pois cada município vai precisar organizar esse conselho de enfrentamento da crise, e tudo isso precisará ser alimentado a nível federal, fazendo uma punção nessa gente que ganhou tanto dinheiro para efetivamente financiar essa política. Quero lembrar que o Brasil não é um país pobre: seu PIB de 7, 3 trilhões e divide por 210 milhões de habitantes, isso dá hoje cerca de R$ 12 mil reais por mês por família de quatro pessoas. Então não falta recursos, é um escândalo total em forma de organização política e econômica.

O senhor historicamente tem apontado nos seus estudos outros caminhos para construir outros modelos de desenvolvimento. Diante do cenário atual, o que seria possível como alternativa?
Nós sabemos o que fazer, pois temos a Agenda 2030, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a visão que hoje generalizada de que é preciso organizar um tripé que consiste numa sociedade economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável. Assegurar isso passa por uma forma de organização que ponha de lado, como tanta gente está falando, como Jeffrey Sachs e outros, gente do grande capital, que precisamos sair fora desse desastre que foram os 40 anos de neoliberalismo (1980-2020) e passar para um sistema equilibrado de regulação do Estado, da atividade das empresas e do controle pela sociedade civil organizada.

Lembrando que na Suécia, uma pessoa média participa de quatro organizações comunitárias da sua cidade, ou seja, assim como na Dinamarca, Canadá e China, onde há uma capacidade descentralizada de controle sobre o que se faz como os recursos públicos. O tripé econômico, social e ambiental, que se apoia no tripé da organização, de uma visão equilibrada do papel do Estado, das empresas e da sociedade civil (não basta um voto a cada dois anos, por exemplo), mas controlar efetivamente o que acontece. O neoliberalismo gerou gigantes mundiais corporativos que agem em todo o planeta e como não tem governo planetário, brincam com diferenças de lei, migrando de um país a outro. Foi reduzida drasticamente a capacidade de regulação do Estado, há uma perseguição das organizações da sociedade civil e gera um vale-tudo corporativo que está aprofundando as crises por toda parte. Inclusive a situação descontrolada da política que está se criando no mundo. Os dois triângulos: o social, ambiental e econômico, assegurado pelo equilíbrio entre Estado, empresa e sociedade civil.

Eu escrevi o livro "O pão nosso de cada dia", onde discuto qual é o papel do Estado e da empresa? Não é ser de esquerda e estatizar ou ser de direita e privatizar. Nossa sociedade é complexa demais para simplificações ideológicas. Por exemplo, deixa as empresas produzirem camiseta, bicicleta, automóvel. Saúde, educação, segurança, cultura, habitação popular, a proteção do meio ambiente, as bases sociais, se deixar na mão dos grupos privados não vai funcionar de acordo com o interesse público. As quatro grandes áreas que fazem funcionar uma economia têm que funcionar de maneira distinta: a parte produtiva para o mercado, as grandes infraestruturas (energia, transporte, telecomunicações, água, saneamento) que precisam cobrir o país de maneira equilibrada, deve depender do planejamento estatal, do governo. Agora toda a parte que são os intermediários financeiros, comerciais, jurídicos, etc. eles se transformaram em cobradores de pedágios sobre tudo o que a gente faz. Antigamente eu ia na papelaria pagava em dinheiro o valor real, mas agora pago com cartão e 5% daquilo foi para o banco. Gerou-se esse sistema de pedágio que está drenando a economia e que permitiu a acumulação das fantásticas fortunas que mencionei. O que se tira em forma de juros das famílias e das empresas é cerca de 16% do PIB. O que se tira da capacidade do governo sob a forma de juros sobre a dívida pública é cerca de 5% do PIB. Em 2019 os bancos pegaram sob a forma de juros sobre a dívida pública R$ 320 bilhões. Foi feito o teto de gasto, mas não se fez o teto de juros, o que evidencia que quem está no poder são os banqueiros.

Se você soma o que tiram do Estado, das empresas produtivas e das famílias, atinge um patamar de esterilização de 20% do PIB. Então o governo do Brasil dizer que não tem dinheiro para enfrentar a pandemia é uma piada. Nós temos conhecimentos técnicos, uma estrutura funcional do SUS muito bem organizada, mas também um governo federal que drena os recursos e os tornando improdutivos. A esperança para muita gente é que a partir de um certo nível de crise seja possível fazer uma reorganização política e de gestão que devolva um mínimo de racionalidade ao que estamos vivendo.

Há várias análises que dizem que o mundo nunca mais será o mesmo. Sob suas lentes, que mundo o senhor prevê? É possível construir outro modelo, outra forma?
É mais que possível, é inevitável. O que temos está indo para o brejo, e tenho acompanhado isso no mundo todo. Trabalhei muitos anos na ONU, tenho muitos contatos, recebo essa documentação. Temos a contaminação das águas no planeta todo, a liquidação da cobertura florestal, a perda de solo agrícola pelo excesso de quimização e monocultura, o aprofundamento da desigualdade no planeta que gera gente revoltada por toda parte, a raiva que as populações criam frente a um sistema que não está funcionando, que acaba elegendo demagogos que falam em ódio por toda parte. Pega o Trump, Duterte (Filipinas) e Bolsonaro. Na realidade acumula-se caos econômico, social, político e ambiental. O drama é quanta gente vai ter que morrer e sofrer para que a gente reorganize esse sistema. Por enquanto os grandes grupos financeiros mundiais estão lavando a burra.

O novo coronavírus chegou então como um divisor de águas, num momento em que a sociedade estava numa encruzilhada?
Sem exageros, a grande realidade é que estamos todos muito inseguros. Se amanhã se verifica que afinal a cloroquina tem algum papel para frear o avanço, ou se conseguem uma vacina que funcione antes de uma generalização catastrófica, os mesmos grupos vão dizer 'ufa, passamos'. Como foi em 2008, que se esperava uma mudança é só aprofundou a exploração do sistema. Não há segurança no futuro. O filósofo espanhol Ortega y Gasset diz "Não sabemos o que está acontecendo, e é exatamente isso que está acontecendo".

O que está acontecendo é uma imensa insegurança. Agora sim, precisamos preparar todas as alternativas que estão ai. Se pegar a discussão na economia de Francisco, Kate Raworth, Economia Donut, sete licções para a economia do século XXI, Instituto Roosevelt, meu artigo Além do coronavírus. O desafio não é o coronavírus. É ele por cima de outro vírus que é Bolsonaro e companhia e outros tantos vírus que temos no mundo. O Brasil ter fome é uma vergonha. Precisamos de mudanças em profundidade

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