Intimamente vinculada à questão da globalização econômica é a mudança no papel do Estado. A globalização significa que as variáveis externas passaram a ter influência acrescida nas agendas domésticas, reduzindo o espaço disponível para as escolhas nacionais. Já mencionei que os requisitos para a competitividade externa levaram a uma maior homogeneidade nos aspectos institucionais e regulatórios dos Estados, que tais requisitos deixaram menor margem de manobra para estratégias nacionais altamente diferenciadas em relação, entre outros, ao trabalho e à política macroeconômica. O equilíbrio fiscal, por exemplo, tornou-se um novo dogma,, conforme bem ilustra o Tratado de Maastricht da União Européia, que fixa parâmetros dentro dos quais devem situar-se os números do equilíbrio orçamentário de seus países-membros.
Tanto a opinião pública internacional quanto o comportamento dos mercados também passaram a desempenhar um papel que antes não tinham na redefinição dos limites possíveis de ação para o Estado. A informação movimenta-se livre e rapidamente. Se, por exemplo, circula a noticia de que um determinado país está enfrentando dificuldades para controlar seu défict orçamentário ou estará proximamente elevando suas taxas de juros, os mercados financeiros intencionais tomam, com fundamento nestas noticias, decisões que poderão ter impacto real no pais em questão.
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Os países, seus lideres e as políticos por eles adotadas estão sob vigilância próxima e constante da opinião pública internacional. Qualquer medida julgada por estas entidades imateriais como passo em falso pode impor penalidades. Ao contrário, decisões ou eventos interpretados como positives solo recompensados. A opinião pública internacional e, sobretudo, os mercados tendem a ser conservadores, a seguir uma certa ortodoxia em matéria econômica. Estabelecem um padrão de conduta econômica que praticamente não admite desvios num mundo em que há imensa variedade de realidades nacionais. O complexo processo de ajuste não deve ignorar tal diversidade.
A globalização modificou o papel do Estado num outro aspecto. Alterou radicalmente a ênfase da ação governamental, agora dirigida quase exclusivamente para tomar possível As economias nacionais desenvolverem e sustentarem condições estruturais de competitividade em escala global.
Isto não significa necessariamente um Estado menor, muito embora este também seja um efeito colateral desejável da mudança de ênfase, mas certamente pede um Estado que intervenha menos e melhor; um Estado que seja capaz de mobilizar seus recursos escassos para atingir prioridades selecionadas, um Estado que possa canalizar seus investimentos para as áreas vitais na melhoria da posição competitiva do pais, tais como infra-estrutura e serviços públicos básicos, entre os quais melhor educação e saúde; um Estado que esteja pronto a transferir para mãos privadas empresas melhor administradas por elas; um Estado, finalmente, no qual os funcionários públicos estejam a altura das demandas da coletividade por melhores serviços.
E tudo isso tem de ser feito num tempo em que os valores democráticos e uma sociedade civil fortalecida tornam ainda mais amplas as reivindicações de mudança. A transformação do Estado tem também de ser conduzida num quadro econômico de disciplina fiscal e austeridade no gasto público, em que o Estado conta com menos recursos financeiros. Não se trata de tarefa simples. Requer uma mudança substancial de atitude e determinação para combater interesses velados dentro do aparato estatal. Mas não há alternativa. No caso do Brasil, temos, em suma, de reconstruir o Estado se quisermos ter qualquer possibilidade de êxito na transição do modelo autárquico do passado para outro em que nossa economia se integre plenamente nos fluxos mundiais de comércio e investimento. Pode parecer paradoxal que esta remodelação do Estado de nenhuma forma conflite com ideais tradicionais da esquerda (e orgulho-me de ser fundador e membro do partido que representa a Social Democracia no Brasil). Pois é justamente isto o que ocorre. Ao realocar seus recursos e suas prioridades para educação e saúde, num país com os grandes contrastes sociais do Brasil, o novo Estado estará contribuindo para a realização de algo em que ele falhou no passado: promover maior igualdade de oportunidades numa época em que a qualificação e a educação constituem pré-requisito não apenas para a conquista de um posto de trabalho, mas também para aumentar o grau de mobilidade social no país.
Hoje, mais do que nunca, metas caras à esquerda podem ser alcançadas junto com e em virtude de nossos esforços para aumentarmos as capacidades nacionais com vistas à participação competitiva na economia mundial. Além disso, este Estado remodelado precisa ser ainda mais forte no desempenho de suas tarefas sociais e melhor preparado para regulamentar as atividades recentemente privatizadas. As dificuldades no processo de transição do papel do Estado são sentidas em toda parte e não podem ser subestimadas. A reforma da Previdência Social na França e as difíceis negociações para a aprovação do orçamento nos Estados Unidos são exemplos dos obstáculos a serem superados pelos Governos, basicamente porque não há respostas imediatas e evidentes ao desafio da transição. Abandonar as práticas tradicionais do Estado do Bem-Estar não implica deixar de lado a necessidade de melhores padrões de vida para os nossos povos.
Globalização, inclusão e exclusão
Os pontos cardeais já não explicam de forma satisfatória o mundo. As divisões Leste-Oeste e Norte-Sul eram conceitos que minha geração empregou para lidar respectivamente com a realidade política da Guerra Fria e com o desafio econômico do subdesenvolvimento. A situação internacional desta metade da década de 90 é muito mais complexa. O mundo pode ser dividido entre as regiões ou países que participam do processo de globalização e usufruem seus frutos e aqueles que não participam. Os primeiros estão geralmente associados à idéia de progresso, riqueza, melhores condições de vida; os demais, à exclusão, marginalização, miséria. É certo que a globalização produziu uma janela de oportunidades para que mais países pudessem ingressar nas principais correntes da economia mundial. Os Tigres Asiáticos e mesmo o Japão são exemplos significativos. Estes países souberam aproveitar as oportunidades dadas pela economia mundial através da adoção de um conjunto de políticas que incluem, entre outras, o desenvolvimento de uma força de trabalho bem treinada e qualificada, aumento substancial da taxa de poupança doméstica, e implementação de modelos voltados para a exportação e baseados na intervenção estatal seletiva em alguns setores.
Para outros países em desenvolvimento mais complexos, entre os quais o Brasil e a Índia, a integração na economia global está sendo feita à custa de maior esforço de ajuste interno e numa época de competição internacional mais acirrada. Nossos avanços são conhecidos, e não tenho dúvidas de que nossos dois países estão tendo êxito em gradualmente colher os frutos dos laços econômicos mais profundos que estão estabelecendo com o resto do mundo.
O mesmo acredito será válido para as chamadas economias em transição dos antigos países comunistas, que, não obstante, estão pagando um preço alto pelo ajuste aos princípios da economia de mercado impostos pela realidade atual.
Para os países menores e mais atrasados, prevalece, porém, um grande ponto de interrogação. Serão eles capazes de algum dia poder superar os desafios da globalização? Estão seus povos condenados por uma lógica perversa a viver na pobreza absoluta, a ver suas instituições ruírem e a depender da ajuda externa num mundo menos predisposto a oferecê-la e mal preparado para canalizá-la de modo eficiente? Reconheço que as dificuldades a serem enfrentadas por esses países são enormes. No entanto, recuso-me a aceitar que seu destino esteja predeterminado ao fracasso, como se nada pudesse ser feito, como se a comunidade internacional pudesse conviver confortavelmente com a indiferença e a paralisia em relação aos países mais pobres. A marginalização perverte a boa consciência da humanidade. A marginalização, todavia, não está confinada unicamente aos países ainda não integrados na economia internacional. Ela também está crescendo nos próprios países prósperos.
A globalização significa competição com base em maiores níveis de produtividade, ou seja, maior produção por unidade de trabalho. O desemprego resulta assim dos mesmos motivos que levam uma economia a ser competitiva. A situação é particularmente grave na Europa. Os que são demitidos nos países ricos podem recorrer a mecanismos de proteção social de diferentes tipos; alguns poderão ser treinados para um trabalho substituto. Mas pouco poderá fazer-se para aliviar a frustração dos jovens que querem ingressar no mercado de trabalho e não conseguem. A falta de esperança, o consumo de drogas e álcool, o desmembramento da família são alguns dos problemas trazidos pelo desemprego e pela consequente marginalização. Há um sentimento de exclusão, de mal-estar em vastos segmentos das sociedades ricas integradas na economia global, alimentando a violência e, em alguns casos, atitudes de xenofobia. Como lidar com a complexa questão do desemprego é um desafio com o qual se defrontam praticamente todos os países que participam da economia global. A resposta a ele certamente não deve ser encontrada numa reação à globalização, seja mediante um fechamento da economia ao comércio com parceiros externos, o que apenas agrava a marginalização de um país, seja mediante o estabelecimento de regras muito rígidas nas relações de trabalho, passo que corre o risco de, em vez de estimular, dificultar a criação de empregos.
Apesar de que dificilmente se poderia considerar a criação de empregos uma responsabilidade direta dos Governos, estes dispõem de uma ampla gama de possibilidades de ação para atacar o problema. A primeira e talvez mais importante medida é a promoção do crescimento econômico sustentado, através da adoção de políticas corretas. A segunda seria promover programas dos órgãos oficiais e do setor privado que sejam destinados ao retreinamento dos trabalhadores dispensados por setores nos quais já não conseguem encontrar um posto de trabalho. Um terceiro passo seria tornar mais flexível o conjunto de regras relativas às relações de trabalho, de modo a preservar o número de empregos. Esta flexibilização deveria possibilitar, por exemplo, que empresas e trabalhadores negociassem livremente um leque tão vasto quanto possível de tópicos, tais como o número de horas de trabalho e de dias de férias, a forma de pagamento das horas extras, etc. Deveria também resultar em menores custos para a contratação de trabalhadores. Por fim, há alguns instrumentos à disposição do Governo que podem ser atrelados à expansão da oferta de empregos, tais como a concessão de créditos pelos bancos estatais e a inclusão de incentivos na legislação tributária. Em países de grande população como o Brasil e a Índia, deve-se também ter sempre presentes, ao pensar-se a questão da geração de empregos, as formas de funcionamento da chamada economia informal. Em que medida a economia informal reduz empregos na economia formal e em que medida oferece postos de trabalho adicionais? Um melhor conhecimento destas questões é necessário para que possamos tirar as conclusões corretas e adotar as medidas apropriadas.