Luiz Gonzaga Belluzzo é economista, professor, consultor editorial da revista Carta Capital
Foram assustadoras as arengas da ministra Rosa Weber e do ministro Luís Roberto Barroso na sessão do Supremo Tribunal Federal incumbida de julgar o habeas corpus do ex-presidente Lula. Os argumentos deambularam entre o empirismo grosseiro de Barroso e o instinto de manada de Rosa Weber.
Não digo má-fé porque a esses fâmulos da retórica bacharelesca faltam conhecimentos elementares acerca das forças que hoje mobilizam as frações conservadoras e autoritárias da sociedade brasileira. O tumor que ora se expande na alma dos Senhores da Terra e de seus beleguins remediados é genético, originário do DNA colonial e escravagista que não admite qualquer ousadia dos subalternos na busca da maior igualdade.
Essa marca da vida social brasileira é chocantemente óbvia e escancarada. Esse estigma resiste a todos os disfarces que os liberais-autoritários simulam com o propósito de esconder suas hipocrisias.
Os trogloditas brasileiros acumulam no inconsciente a herança dos pensadores liberais. Mandeville, por exemplo, tinha horror a qualquer intervenção legislativa do Estado destinada a proteger “aquela parte mais mesquinha e pobre da sociedade”, condenada a desenvolver um “trabalho sujo e digno de escravos”.
Recomendava enfaticamente que fossem obrigatórias para pobres e iletrados a doutrinação religiosa e a frequência à igreja aos domingos. “Essa gente” deveria, além disso, ser impedida de participar de qualquer outro divertimento no dia do Senhor.
Locke recomendava uma vigorosa ação do Estado em relação à chusma de vagabundos e desempregados. Esta rafameia deveria ser internada, para recuperação, em workhouses, verdadeiros antecessores dos campos de concentração.
O grande Alexis de Tocqueville indignava-se com as tentativas demagógicas dos trabalhadores de reduzir a jornada de trabalho, uma interferência indevida na liberdade de contratação entre patrões e empregados, mas não trepidava em exigir severas limitações ao afluxo da população do campo para as cidades.
O apetite voraz de muitos brasileiros ricos e bonitos por preconceitos de todos os matizes chegou ao ponto da regurgitação. Na onda recente de mastigação de impropérios racistas, homofóbicos e regionalistas, tal voracidade encontrou auxílio nos maxilares que proclamavam as virtudes da “meritocracia”.
A rejeição do “outro” não só atingiu os níveis mais profundos daquelas almas nativas, mas também conseguiu angariar novos adeptos. A rejeição é mais profunda porque atingiu, de forma devastadora, os sentimentos de pertinência à mesma comunidade de destino, suscitando processos subjetivos de diferenciação e desidentificação em relação aos “outros”, ou seja, à massa de pobres e miseráveis. E essa desidentificação vem assumindo cada vez mais as feições de um individualismo agressivo e antirrepublicano.
É ocioso dizer que tais expectativas e anseios não são um desvio psicológico, mas enterram suas raízes nas profundezas da desigualdade que há séculos assola o País. Produtos da desigualdade secular e daquela acrescentada no período do desenvolvimentismo a qualquer preço, as classes cosmopolitas têm sido, ao mesmo tempo, decisivas para a reprodução do apartheid social e impiedosas na crítica ao uso da política fiscal para promover melhor distribuição de renda. Isso para não falar dos ataques à redução da pobreza absoluta, acoimada de “assistencialismo”.
Luís Roberto Barroso, uma reinvenção tropical das Preciosas Ridículas de Molière, esmerou-se em considerações primárias sobre as diferenças entre pobres e ricos na prestação jurisdicional brasileira. É óbvio que as supracitadas excelências ignoram completamente os debates relevantes sobre os impasses e contradições da democracia moderna.
Sob a casca da virtude, o julgamento de Lula abriga o ovo da serpente. Os gritos do combate à corrupção escondem os sussurros da inconformidade com os valores da igualdade e da liberdade.
Não ocorre aos supracitados ministros da Suprema Corte que estão servindo ao que Luigi Ferrajoli chamou de “poderes selvagens”. Selvagens são aqueles poderes que crescem no interior da sociedade (in)civil mediante a acumulação de “instrumentos” de vários tipos, sem qualquer freio ou limite constitucional e que tendem a controlar o poder legal.
No mundo moderno, diz Michelangelo Bovero, os poderes do mercado, em estreita aliança com os meios de comunicação, lideram a escalada do poder sem freios dentro da sociedade. Isso não impede, mas, ao contrário, estimula a luta pela supremacia dentro dos “poderes” do Estado.