Segundo Carlos Müller, armadores internacionais que tentam burlar o ordenamento jurídico brasileiro provocam ações que chegam até o Supremo
Mais de 1.200 navios operam continuamente em águas brasileiras na atividade mercante e no apoio marítimo. Cerca de 700 deles são navios de porte significativo, operados por mais de cem armadores estabelecidos sob as leis brasileiras. Para movimentar tudo isso, trabalham 48 mil marítimos. Outros 38 mil são empregados em barcos de pesca. A operação em águas brasileiras privilegia navios de bandeira nacional, que devem obrigatoriamente empregar marítimos locais como comandante e chefe de máquinas e em pelo menos dois terços da tripulação. E uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho de setembro determinou que a contratação de trabalhadores brasileiros para atividades a bordo de navios estrangeiros deve seguir a legislação do Brasil.
Isso tudo para evitar abusos contra os direitos desses trabalhadores, especialmente por navios que operam sob bandeira de conveniência, ou seja embarcações que se registram em outros países para evitar regulamentos mais rigorosos.
"É nesses navios que a gente do mar brasileira encontra as piores condições de trabalho e de habitabilidade a bordo. Também é onde ocorrem mais acidentes graves, além de casos frequentes de assédio moral e sexual', afirma Carlos Müller, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores dos Transportes Aquaviários e Aéreos, da Pesca e dos Portos (CONTTMAF) e membro do Comitê Regional da ITF para a América Latina e o Caribe.
Müller participou do Encontro da Rede Scalabriniana Stella Maris, um evento internacional que vai até quarta, promovido pela Congregação dos Missionários de São Carlos, para discutir temas como a escravidão contemporânea, tráfico humano e os direitos de pescadores e trabalhadores do mar, que começa hoje em São Paulo.
Quais são os principais problemas e desafios enfrentados pelos marítimos no Brasil, do ponto de vista do trabalho?
Carlos Müller: Mais de cem empresas privadas utilizam amplamente navios de bandeira brasileira, nos quais as condições de trabalho são boas. A despeito disso, a Petrobras afreta cerca de 150 navios petroleiros de outras bandeiras, geralmente de conveniência, para atuar na nossa cabotagem. É nesses navios que a gente do mar brasileira encontra as piores condições de trabalho e de habitabilidade a bordo. Também é onde ocorrem mais acidentes graves, além de casos frequentes de assédio moral e sexual.
Os navios de cruzeiro são uma situação à parte. Apenas 20 deles operam sazonalmente no Brasil, empregando brasileiros e estrangeiros. Neste setor, a gente do mar tem as piores escalas de embarque em águas brasileiras, e em nenhum outro segmento os trabalhadores são mantidos em seus postos de trabalho por tantas horas num mesmo dia.
Existem, então, diferenças nas condições de trabalho entre diferentes tipos de embarcações comerciais, como cargueiros, petroleiros e navios de cruzeiro?
Carlos Müller: Há alguma diferenciação na questão salarial entre tipos distintos de navios comerciais, considerando as exigências de treinamentos, experiências e certificações. No entanto, as condições de trabalho no Brasil seguem um conjunto de cláusulas básicas, padronizadas em todos os acordos coletivos, com benefícios bem acima do que é estabelecido pela legislação internacional.
E como as leis trabalhistas são aplicadas a bordo de navios sob bandeiras de conveniência?
Carlos Müller: Em águas brasileiras, independentemente da bandeira arvorada pelo navio, além da MLC [Maritime Labour Convention ou Convenção do Trabalho Marítimo], os armadores precisam cumprir as leis trabalhistas brasileiras e os acordos coletivos de trabalho negociados pelos sindicatos para os tripulantes brasileiros. As convenções e resoluções da OIT (Organização Internacional de Trabalho) não podem ser utilizadas como justificativa para o armador deixar de cumprir lei, decisão, costume ou acordo que assegure condições mais favoráveis aos trabalhadores.
Alguns armadores internacionais, notadamente de navios de cruzeiro, vêm tentando burlar essa previsão existente no ordenamento jurídico brasileiro, na Constituição da OIT e na própria MLC. Isso tem resultado em milhares de ações judiciais, com valores vultosos, que estão chegando até a última instância de recurso. O Supremo Tribunal Federal tem decidido pela obrigatoriedade de cumprimento da lei trabalhista brasileira, mais favorável aos trabalhadores.
De que maneira os tratados internacionais protegem os trabalhadores do mar?
Carlos Müller: Nos navios engajados em viagens internacionais, a MLC, que consolidou mais de 70 convenções e resoluções da OIT, representa o instrumento mais efetivo para garantir os direitos da gente do mar, na medida em que outorga ao Port State Control autoridade para fiscalizar navios de outras bandeiras e atuar no combate ao trabalho em condições degradantes e às violações dos termos previstos na convenção.
No Brasil, a MLC entrou em vigor somente em 2021 e sua implementação na legislação nacional foi inviabilizada pelo governo passado. A administração de Jair Bolsonaro, a partir de 2019, extinguiu 75 órgãos colegiados da administração pública federal, incluindo conselhos, comitês, comissões, grupos, diretorias ou qualquer outra denominação dada ao órgão. Tal medida interrompeu abruptamente o diálogo social e fragilizou as políticas sociais existentes.
Como organizações internacionais abordam questões relacionadas aos direitos dos trabalhadores do mar?
Carlos Müller: Em nossa avaliação, a legislação internacional ainda é tímida na garantia de direitos da gente do mar. A IMO (Organização Marítima Internacional da ONU) só recentemente incorporou a questão do “elemento humano” de forma mais efetiva, mas não contempla mecanismos de diálogo social.
Desse modo, as decisões são tomadas pelos estados-membros sob influência de um forte lobby, movido pelos interesses dos países mais desenvolvidos e da indústria marítima internacional.
Na OIT há mecanismos de diálogo social tripartite, mas até o século passado havia grande disparidade nas condições de trabalho no setor marítimo ao redor do mundo. A MLC foi introduzida com o objetivo de garantir direitos fundamentais para os trabalhadores no mar, que nela estão enumerados:
a) liberdade de associação e liberdade sindical, e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; b) eliminação de todas as formas de trabalho forçado; c) efetiva abolição do trabalho infantil; e d) eliminação de discriminação em matéria de emprego e profissão.
Esperamos que também incorpore, em breve, o direito a um ambiente de trabalho seguro e saudável.
Como melhorar a cooperação internacional no combate à exploração de trabalhadores do mar?
Carlos Müller: Atuamos em uma indústria que gera uma imensa riqueza, mas nem sempre tem sido justa com aqueles que verdadeiramente fazem as embarcações navegarem de forma eficiente e sustentável, e que são parte fundamental da operação contínua das cadeias logísticas.
Primeiramente, devemos ter extremo cuidado para não nos tornarmos mais uma engrenagem dessa máquina perversa, que funciona internacionalmente e busca beneficiar a poucos por meio da exploração de marítimos miseráveis
O trabalho global da ITF pode ajudar na propagação de exemplos positivos, de sindicatos fortes e atuantes que estimulam os trabalhadores marítimos a lutarem coletivamente por seus direitos, levando-os à obtenção de avanços significativos.
Contudo, o mundo ideal continua longe de ser alcançado e, nesse contexto, a rede Stella Maris, com mais de um século de existência, mantém um trabalho de extrema importância para os marítimos de todo o mundo. Seja pelo serviço de assistência religiosa, seja pelas receptivas instalações de bem-estar em terra ou pelo apoio aos marítimos que se encontram em situação de dificuldade.
Como as condições de trabalho a bordo são monitoradas e fiscalizadas no país?
Carlos Müller: O Ministério do Trabalho conta com uma Secretaria de Inspeção do Trabalho que possui uma divisão especializada em trabalho marítimo e portuário e mantém um quadro de auditores fiscais em todos os estados do Brasil. Essa Secretaria é a autoridade competente para fazer cumprir as obrigações do governo brasileiro previstas na Consolidação das Leis do Trabalho e na MLC [Maritime Labour Convention ou Convenção do Trabalho Marítimo], inclusive para dar efetividade –no que se refere ao trabalho da gente do mar – no Port State Control [regime internacional estabelecido para inspecionar navios estrangeiros em portos nacionais com o objetivo de verificar se esses navios cumprem os padrões internacionais estabelecidos em várias convenções marítimas].