Terça, 19 Março 2024

Ronaldo Bicalho é professor de Economia e Gestão em Energia

No momento em que o Brasil ensaia uma nova reforma do setor elétrico brasileiro, baseada na ampliação do mercado livre e na privatização da maior geradora do país, um livro lançado em agosto de 2017, por um dos mais importantes economistas da energia, Jacques Percebois, em conjunto com Jean-Pierre Hansen, engenheiro e também economista, faz uma avaliação sobre a evolução do setor elétrico europeu depois de vinte anos de reformas liberalizantes.

O livro - Transition(s) électrique(s), Ce que l’Europe et les marchés n’ont pas su vous dire [Transição(ões) elétrica(s), o que a Europa e os mercados não souberam lhe dizer] (*) - analisa o processo no qual depois de vinte anos a onda de desregulamentação, privatização e outras medidas destinadas a retirar o setor elétrico do conjunto de atividades consideradas como de serviço público se chocou contra o duplo obstáculo da economia real e dos imperativos climáticos.

O Le Monde publicou uma resenha sobre o livro bastante interessante, da qual retiramos os pontos apresentados a seguir.

O mercado como pedra filosofal

O problema é que os proponentes do fim do suprimento de energia elétrica como serviço público - modelo tradicional no qual o Estado define os meios de produção e os preços no âmbito de uma estratégia a longo prazo em benefício deste "mercado" - pretendiam ter encontrado a pedra filosofal. O mercado deveria não apenas reduzir o preço ao consumidor desta preciosa energia, mas também orientar os investimentos na direção dos meios e sistemas "ótimos" para o futuro.

Mas um mercado louco - em que o preço da mercadoria negociada é totalmente desconectado das características físicas de sua produção e, portanto, de seu custo real - pode dar bons conselhos? Mesmo que a maior parte da eletricidade ainda seja comercializada em contratos diretos entre produtores e distribuidores, esse mercado deve dar-lhes uma referência para o preço a negociar.

Perplexidade e embaraço

Jean-Pierre Hansen e Jacques Percebois se encontram, na realidade, em uma situação relativamente embaraçosa. Como conhecedores de sistemas elétricos, por uma abordagem dupla - a do engenheiro e a do economista - também são fervorosos defensores do sistema capitalista e da concorrência como meio essencial para orientar as atividades econômicas. Assim, o livro termina com uma declaração contraditória. Por um lado, eles reafirmam o credo competitivo: "O setor deve ser aberto à concorrência? Claramente, sim, porque ela provavelmente aumentaria a eficiência operacional dos operadores do arquipélago dos antigos monopólios”. Mas, no entanto, escrevem (p 266) na página seguinte: "Para garantir este futuro nós defenderemos o retorno à escolha pública". Os autores explicam essa contradição dizendo que, segundo eles, há mercado e mercado, que se pode distinguir a competição "pelo" e "por" um mercado. Mas a ocorrência freqüente das palavras "perplexo" ou "perplexidade" no livro provavelmente indica o sentimento dos autores face a essa contradição.

Quando o fracasso vale lições

Outra palavra que se encontra com frequência no trabalho é "fracasso".

Os governos europeus e a Comissão Europeia venderam aos cidadãos o fim dos monopólios públicos de produção e distribuição de eletricidade como a forma ideal de reduzir o custo para os consumidores. No entanto, no longo prazo, nos últimos vinte anos, essa concepção fracassou. A concomitância da privatização e desregulamentação com o aumento dos preços da eletricidade - quase dobrou em euros constantes em diversos países, incluindo Alemanha, Dinamarca e Grã-Bretanha - poderia fazer crer em uma causalidade simples. Na realidade, como salientam os autores, os preços seguiram em grande parte os custos de produção - os do carvão e do gás, em grande parte impulsionados pelos preços do petróleo. Para cima e para baixo. Claramente, nas palavras dos autores, o custo de produção é muito mais importante nos preços finais do que a natureza pública ou privada das empresas, a existência de monopólios ou de concorrência.

Além disso, a segunda causa do aumento acentuado dos preços dos consumidores é uma questão de escolhas públicas feitas fora de qualquer mecanismo de mercado: subsídios maciços para novas energias renováveis, especialmente energia eólica e fotovoltaica, e os custos de transporte adicionais associados a estas novas instalações. Essas subvenções vêm de taxas alocadas em contas de eletricidade (das quais as grandes indústrias alemãs estão isentas), que totalizam quase 300 bilhões de euros na Alemanha em cerca de vinte anos. E hoje mais de 3 bilhões por ano na França. Assim, as taxas que não representavam mais do que 18% dos preços ao consumidor na França há dez anos, representam 35% hoje.

As empresas no vermelho

O insucesso não está limitado aos preços. A segurança do suprimento de eletricidade da Europa não foi melhorada por vinte anos de reformas liberais. E isso, apesar dos avanços técnicos e das novas ferramentas para o gerenciamento digital de rede. Quanto à introdução maciça de instalações de geração intermitentes - eólica e fotovoltaica - especialmente na Alemanha, ela levou a uma fragilização das redes, a custos de transporte consideravelmente elevados e a uma sobrecapacidade de produção fortemente custosa. A capacidade instalada alemã passou de 120 GW a 200 GW sem o aumento significativo da produção. Tudo isso sem alterar significativamente as emissões de gases de efeito estufa do sistema elétrico alemão, embora esse tenha sido apresentado como o principal imperativo ecológico do século. "Tivemos a escolha entre sair da energia nuclear e sair do carvão: escolhemos a primeira opção", declarou o Secretário de Estado alemão da energia em fevereiro de 2014.

Por fim, o fracasso se vê no colapso geral das empresas do setor. Todos as grandes estão no vermelho, especialmente na Alemanha, mesmo quando os preços ao consumidor aumentaram. "Juntas, as 25 maiores empresas apresentaram uma perda de 3,5 bilhões de euros", afirmam os autores. A EDF foi desestabilizada e as suas contas deterioradas pelas decisões governamentais, incluindo a taxação de lucros e dividendos em bilhões até 2013.

Por que escolher a desregulamentação

Os autores abordam o choque entre o desejo de criar um mercado e o de respeitar um imperativo ecológico - "a onda de mercado e a maré verde" - como o principal fator no fracasso do primeiro. O argumento é forte, mas não esgota a controvérsia. Uma controvérsia que os autores apresentam: "Por que não ficar satisfeito com uma situação em que o preço oferecido por um monopólio de alto desempenho e regulamentado seria baixo? Por que não reformar um monopólio público menos eficiente ao invés de desmontá-lo? "(P 166).

Por que, então, escolher a "desregulamentação"? O termo é justamente criticado pelos autores porque a operação se reflete bastante em uma inflação considerável das regras estabelecidas pelos Estados e pela Comissão para organizar o mercado da eletricidade e os órgãos públicos responsáveis pela sua gestão (a Comissão Reguladora de energia, CRE, na França). Esta transformação do setor elétrico público é, de fato, uma abordagem altamente ideológica, que não deixa espaço para a análise técnica e econômica das vantagens e desvantagens da concorrência em relação ao monopólio público.

Hayek contra Keynes

Segundo os autores, uma reforma, inspirada pelo ultra-liberal Friedrich Hayek, e cuja aplicação seria uma "vingança" do último contra John Maynard Keynes.

Uma reforma dogmática ao ponto de negar as características físicas da eletricidade. "O que você faz com a eletricidade produzida e não vendida?" Perguntou um diretor financeiro de um investidor que não sabe que não se pode injetar mais eletricidade em uma rede do que aquela que é consumida sem que a rede entre em colapso.

Dogmática ao ponto de esquecer que a frequência de rede não pode variar em mais de 1%, para cima ou para baixo, sem cair o sistema, causando o apagão geral, o que aconteceria se toda a Europa tivesse seguido o exemplo Dinamarquês ou alemão quanto ao espaço ocupado pela energia eólica e fotovoltaica no mix elétrico.

Dogmática ao ponto de esquecer que a variabilidade do consumo, diariamente e
sazonalmente, envolve um parque de meios de produção adaptados a essa variabilidade e assegurando o atendimento à máxima necessidade de consumo ao menor custo sistêmico.

Dogmática ao ponto de negar o trabalho de economistas como Marcel Boiteux, presidente histórico da EDF, mostrando que é possível controlar o risco de "renda" indevida para um monopólio público com menos custos do que aqueles necessários para controlar um mercado.

Uma reforma dogmática até o ponto de negar a geografia - as penínsulas elétricas que são Espanha ou Itália e a ilha que é a Grã-Bretanha irão permanecer qualquer que seja a decisão política.

Dogmática até o ponto de negar as análises econômicas, todas situadas no âmbito do capitalismo, incluindo as de Keynes, mostrando que as características físicas da eletricidade levam à idéia de um "monopólio natural" cuja gestão a serviço do interesse geral - consumidores individuais e empresariais - tem maior probabilidade de encontrar o ótimo técnico-econômico do que o uso da concorrência em um mercado cego a longo prazo. Um mercado concentrado no rendimento imediato. Um mercado em que, explicou o CEO da Enron - a empresa cuja ação acabou no apagão da Califórnia: "pode-se ganhar mais dinheiro contratando uma centena de PhDs em matemática do que instalando uma central elétrica."

As transições elétricas

O livro de Hansen e Percebois leva a se perguntar sobre as duas "transições" do sistema elétrico europeu.

A primeira, a proposta do fim dos serviços públicos falhou. Absolutamente nada sugere que uma melhor gestão dos monopólios históricos com base em requisitos públicos baseados em objetivos claros - eficiência operacional, a busca do sistema ótimo de produção e transporte em termos de custos (incluindo um aumento no comércio fronteiriço), descarbonização da produção para respeitar o imperativo ecológico - não teria tido melhores resultados. E uma vez que os britânicos estão discutindo uma renacionalização de suas ferrovias após o fracasso da privatização, a dos sistemas elétricos deve ser discutida novamente.

A segunda é o desafio de descarbonizar a produção de eletricidade - o setor com maior intensidade de carbono no mundo devido ao domínio do carvão e do gás - exige uma intervenção pública decisiva. Nenhum mercado pode levar a um planejamento judicioso e a longo prazo dos meios de produção e das redes de transporte visando essa transição ao menor custo. E isso é verdade para todos os meios (des)carbonizados utilizados: hidráulico, eólico, fotovoltaico, marinhos, geotérmico, biomassa, biogás, nuclear. O que o mercado determina é o meio de produção com maior rentabilidade imediata, gás natural e carvão. As escolhas ideais entre esses diferentes meios não podem ser idênticas em países e regiões; recursos naturais e os imperativos de energia nuclear segura e de baixo custo não são os mesmos.

Como os autores escrevem, devemos retornar às "escolhas públicas". E, portanto, para um debate público, em que os políticos devem parar de se expressar com slogans rudimentares se quisermos elevá-lo ao nível exigido pelo desenvolvimento de uma estratégia vencedora. Este livro contribui para isso.

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*Todo o conteúdo contido neste artigo é de responsabilidade de seu autor, não passa por filtros e não reflete necessariamente a posição editorial do Portogente.

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