Quinta, 21 Novembro 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor, consultor editorial da revista Carta Capital

O governo Temer anuncia a venda de ativos do sistema Eletrobras, muitos já amortizados, no propósito de reduzir o déficit primário projetado para 2018. Em entrevista coletiva, o ministro de Minas e Energia anunciou tarifas mais baratas depois da privatização.

Os antecedentes não confirmam. Na segunda metade da década de 1990, posteridade da privatização das muitas distribuidoras e de algumas geradoras, as tarifas de energia brasileiras conquistaram o campeonato mundial da carestia energética.

Entre dezembro de 1996 e junho de 2006, por exemplo, as tarifas médias subiram 350%, enquanto a inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) registrou variação de 196%. Em termos reais, descontando-se a inflação, o aumento na conta de luz atingiu 77%. O encarecimento da energia expulsou do Brasil as indústrias eletrointensivas.

Os investimentos no setor elétrico, já golpeados pela crise da dívida externa, continuaram em declínio depois da privatização obtusa que, além de deflagrar o apagão do início dos anos 2000, também se esmerou na desarticulação da cadeia produtiva do setor. Em 2017, os mestres de obras da privataria e do rentismo insistem na desconstrução do arranjo institucional que presidiu o desenvolvimento brasileiro.

Na contramão, o Estado chinês promove o maior projeto de energia renovável do planeta. Em sua edição de 22 de julho, a revista The Economist publicou um artigo com o título “Seleção antinatural”. A matéria trata do “modo chinês” de articulação entre o público e o privado. A revista lamenta o programa em curso de fusões das empresas estatais (SOEs): “A agência do governo organizou a fusão de portos, ferrovias, produtores de equipamentos e empresas de navegação... Essas ações parecem destinadas a promover campeões nacionais”.

Escrevi no jornal Valor, em colaboração com o professor Rodrigo Sabbatini: na China, prevalece o pensamento estratégico, hoje em desuso no Brasil. Lá, como já foi cá, o setor produtivo estatal funciona como um provedor de externalidades positivas para o setor privado.

A sinergia público–privado ocorre em três frentes: 1. O investimento público (sobretudo nas áreas de energia, transportes e telecomunicações) corre na frente da demanda corrente. 2. As empresas do governo oferecem insumos generalizados (bens e serviços) em condições e preços adequados. 3. Nelas se abrigam centros de inovação tecnológica.

O desenvolvimento econômico chinês é um caso explícito de simbiose entre o Estado e a iniciativa privada. O Estado planeja, financia em condições adequadas, produz insumos básicos com preços baixíssimos e exerce invejável poder de compra. Na coordenação entre o Estado e o setor privado está incluída a “destruição criativa” da capacidade excedente e obsoleta mediante reorganizações e consolidações empresariais, com o propósito de incrementar a “produtividade” do capital.

A iniciativa privada dá vazão a uma voraz sede de acumulação de capital por meio de investimentos em ativos tecnológicos, produtivos e comerciais. O “modelo” chinês remete mais a Keynes e Schumpeter do que a Marx – ou aos três, para aqueles que se dedicam a estudar a contribuição desses projetos intelectuais para a compreensão do mercado capitalista. Não há espaço para o rentista, devidamente desestimulado a canalizar sua sede de lucros para investimentos socialmente estéreis.

Na China, o rentier não precisa de eutanásia. Títulos públicos têm remuneração discreta. Os mercados de capitais são regulados para evitar supervalorizações (e superdepreciações) de ativos. O controle do fluxo de capitais especulativos garante a independência da política monetária e a estabilidade do yuan. As verdadeiras oportunidades de lucros extraordinários estão nos investimentos que geram inovações, que adensam a cadeia produtiva, que criam empregos. Não há espaço para investimentos socialmente estéreis.

O presidente Xi Jinping advertiu: “A finança pertence ao coração da competitividade do país, a segurança financeira está no centro da segurança nacional e deve constituir-se no fundamento do desenvolvimento econômico e social”.

Assim funciona o mercado no capitalismo chinês. Realizando sua natureza “antinatural”, o Estado não intervém como um intruso indesejável, mas é um partícipe estratégico que apoia o investimento privado para reduzir riscos e incertezas.

Em sua obra maior, Civilização Material e Capitalismo, o historiador Fernand Braudel escreveu: “O erro mais grave (dos economistas) é sustentar que o capitalismo é um sistema econômico... Não devemos nos enganar, o Estado e o Capital são companheiros inseparáveis, ontem como hoje”.

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