Quarta, 27 Novembro 2024

Guilherme Estrella*

Consumo de energia aumentará para atender a mais de 1 bilhão de pessoas no mundo

A oportunidade representada pelo pré-sal para o desenvolvimento industrial brasileiro ainda não foi adequadamente avaliada pelos setores decisórios nacionais.

Enquanto na Bacia de Campos o processo exploratório exibia riscos, ainda que baixos, as descobertas no pré-sal são previsíveis a longo prazo, e de grandes campos, muitos gigantes com reservas maiores que 500 milhões de barris e também supergigantes, como Lula, com mais de 5 bilhões de barris.

Este fato carrega duas oportunidades extraordinárias e imprescindíveis para se elaborar um projeto de desenvolvimento industrial para qualquer país:

(i) suprimento energético a longo prazo, no caso do pré-sal por décadas ao longo deste século XXI, e

(ii) o fator escala, a caracterizar a garantia firme de demanda por uma imensa gama de materiais, equipamentos, máquinas, produtos eletrônicos, sistemas computacionais de controle e qualidade de produção etc. Tudo a basear-se em conhecimento científico e capacitação tecnológica e de engenharia de projetos com elevada sofisticação e garantia de qualidade.

Atacar perspectivas únicas em toda a

nossa história como nação independente

Para assegurar formalmente a concretização destas perspectivas – talvez únicas em toda a nossa história como nação independente – o Congresso Nacional aprovou o novo marco regulatório do pré-sal brasileiro, transformando a União em proprietária do petróleo/gás produzido nos novos campos dentro da área mapeada e, centralmente decisivo, estabelecendo a Petrobrás como operadora única da produção destes estratégicos recursos naturais brasileiros.

É preciso esclarecer, para o público não especializado, o que significa atuar como operador num consórcio na produção de petróleo/gás natural.

O operador exerce um controle total não só sobre as atividades operacionais. Abrange igualmente a completa elaboração dos projetos de engenharia envolvidos e, em consequência, do conteúdo científico e tecnológico do projeto, da definição e escolha de todos os materiais, equipamentos e processos necessários à construção, montagem, operação, manutenção, reparo e de toda a sofisticada logística de transferência e transporte da produção do campo (marítimo, oleodutos e gasodutos).

Diante desta realidade, pode-se perceber o poder do operador do campo em contribuir para um projeto de industrialização do nosso país, principalmente, no caso do nosso pré-sal, quando se trabalha na fronteira do conhecimento científico/tecnológico.

Neste cenário, não se prescinde de uma total integração com a universidade e centros de pesquisa brasileiros, na formação e treinamento de pessoal especializado, de elevada qualificação, assim como com a empresa genuinamente brasileira, tanto na área de materiais e equipamentos especiais quanto na área do desenvolvimento de sistemas eletrônico-computacionais muito avançados, largamente exigidos pelo offshore ultraprofundo (megaprojetos de engenharia instalados em lâmina d’água maior que 2.000m, com poços produtores especiais de mais de 5.000 metros de extensão perfurada pela broca).

Importante também informar que este conjunto de conhecimentos de toda ordem engloba igualmente o campo das tecnologias de defesa, chamadas de “sensíveis” e absolutamente indispensáveis para um país com a importância geopolítica do Brasil.

Mas é exatamente toda esta imensa oportunidade que o pré-sal brasileiro traz ao desenvolvimento minimamente autônomo e soberano de nosso país que despertou a preocupação de interesses que se sentem ameaçados pelo surgimento de novo e importante membro protagonista no palco geopolítico mundial.

Estes interesses, extremamente poderosos, se mobilizaram e modificaram radicalmente a trajetória do Brasil como Nação Soberana.

Afastaram a presidenta da República e imediatamente investiram contra o ponto central do marco regulatório do pré-sal, extinguindo a obrigatoriedade de a Petrobrás ser a operadora única das atividades de exploração & produção. Aliás, cumprindo uma promessa do candidato neoliberal aos interesses não brasileiros que o apoiavam nas eleições presidenciais de que, no final, saiu derrotado em 2013.

Todo o poder de aplicação de uma política desenvolvimentista integral que o governo brasileiro exercia através de sua empresa estatal foi simplesmente extinto, com a falsa ressalva de que a Petrobrás poderia “escolher” se atuaria como operadora ou não, como se fosse aceitável que a empresa pudesse contrariar uma decisão de Estado decidida pelo seu controlador, o próprio governo que usurpou o governo em 2016.

Como consequência, todo benefício que o pré-sal pudesse gerar para a indústria brasileira foi repassado para as empresas estrangeiras e seus fornecedores de mesma origem ou pertencentes aos mesmos interesses financeiros.

Mas esta medida não era suficiente para sepultar definitivamente um projeto autônomo de desenvolvimento nacional. Era preciso minimizar ao máximo a obrigatoriedade do conteúdo nacional, o que foi feito.

Mas, novamente, para promover a compra e utilização de projetos de engenharia, materiais, máquinas e equipamentos realizados fora do Brasil, foi-lhes concedida uma imensa isenção tributária de importação para elevar ainda mais a atratividade das operações.

Entretanto, a Petrobrás permanecia como a operadora única das atividades de produção de cerca de 12 a 15 bilhões de barris nas áreas da chamada “cessão onerosa”, com volumes de reservas que excediam o volume original contratado. Produzir estas áreas é questão de sustentabilidade para a Petrobrás no médio e longo prazos, e a anulação dos contratos traz ameaças ao futuro da companhia.

Todas estas decisões inserem-se com perfeição na opção dos governos após 2016 pela redução da participação do governo, através de suas empresas estatais, na gestão do nosso país.

Com o atual governo, esta intenção tornou-se clara e defendida publicamente com a defesa de privatização/desnacionalização total da economia brasileira e a desconstrução do aparelho de Estado Nacional.

Mas, no caso da Petrobrás, em razão do simbolismo que a empresa ostenta em relação à própria nacionalidade brasileira, este governo apresenta argumentos falsos para conduzir o cidadão comum brasileiro a aceitar sua privatização.

Primeiro, afirma que a Petrobrás está quebrada, visão totalmente desmontada principalmente pelos dados apresentados pela Associação dos Engenheiros da Petrobás (Aepet), com base em estudos do economista Claudio da Costa Oliveira.

Outro argumento diz respeito ao abandono dos combustíveis fósseis – petróleo e gás natural – como principais fontes de energia da humanidade, nestes próximos anos. Esta previsão não tem qualquer credibilidade pelo fato de que na atual matriz energética mundial, óleo e gás (o&g) aparecem com 60% de participação, realidade que não será mudada por décadas pois exigiria transformações radicais nas atividades humanas de todos os tipos, impossíveis de serem implementadas em poucas décadas.

Certamente, o&g terão diminuídas sua contribuição na matriz mundial, abrindo espaço crescente para fontes renováveis; ao mesmo tempo, entretanto, o consumo de energia aumentará significativamente nas próximas décadas na medida em que mais de 1 bilhão de pessoas no mundo vivem com baixos níveis de consumo de energia, em razão da gigantesca desigualdade social por que padece a humanidade.

Exemplo disto é o próprio Brasil: somos a nona economia no mundo e ocupamos a 72ª colocação (dados de poucos anos atrás, mas que não deve ser diferente da realidade atual) no quesito consumo de energia por habitante. Nosso consumo de petróleo – 2,5 milhões de barris/dia – reflete esta realidade e aponta para um concreto potencial de aumento de consumo de o&g, desde que o país saia desta crise em que foi afundado.

É necessário, também, citar a nossa matriz energética, de longe a mais equilibrada entre fósseis (55%) e renováveis (45%) dentre as maiores economias do mundo, com predominância absoluta de combustíveis fósseis em seu consumo de energia. Este fato significa que, com a crescente contribuição dos renováveis na nossa matriz, com o crescimento inescapável de nosso consumo de energia, nosso pré-sal tem assegurada sua participação também crescente nas próximas décadas. Aliás, este é um ponto central na discussão da privatização da Petrobrás, já anunciada por este governo.

O Brasil aparece, pelo conjunto muito significativo de nossos recursos naturais, como um dos países com notável potencial de crescimento de seu mercado interno, a garantir a sustentabilidade e o devido retorno financeiro de investimentos para produzi-los. Petróleo & gás natural têm mercado seguro e muito crescente no nosso território, pela sociedade brasileira,

A manutenção da integridade do sistema industrial produtivo da Petrobrás – exploração & produção, refino e distribuição, terminais e dutos distribuidores, logística, fertilizantes – é inquestionavelmente mandatória. Não só por manter a gestão direta, pelo Estado Nacional, de insumos estratégicos básicos para a construção do PIB brasileiro mas por permitir que estes mesmos insumos energéticos, tão indispensáveis à vida dos cidadãos deste país, cheguem ao consumidor final com os menores preços possíveis na medida em que sejam geridos de forma a manter a sustentabilidade do sistema como um todo e não de partes isoladas, que focam somente no lucro e na rentabilidade de suas atividades específicas.

Não há qualquer dúvida que o esquartejamento do sistema industrial Petróleo Brasileiro S.A. através da privatização/desnacionalização de seus componentes – refinarias, dutos, terminais, setor de fertilizantes, terminais etc... – irá enfraquecer, senão eliminar, a gestão do Estado Brasileiro num setor tão estratégico para a soberania nacional como é o de energia, especialmente petróleo e gás natural.

Tudo agravado pelo fato de que as instituições que estão comprando os ativos da Petrobrás exibem grande, senão total, participação de fundos de investimentos internacionais, representantes centrais do capitalismo rentista mundial, sem qualquer compromisso como desenvolvimento brasileiro, em qualquer de suas dimensões.

Trata-se de um crime de lesa-pátria típico pois, no caso do pré-sal, as empresas estrangeiras que estão adquirindo os blocos não correram qualquer risco para descobri-los enquanto foi a Petrobrás – em última análise o povo brasileiro, representado pelo acionista principal, a União – que se transforma numa agência de apoio e promoção às grandes empresas petrolíferas internacionais e as empresas fornecedoras de bens e serviços industriais de seus países originários ou componentes do mesmo conjunto de interesses financeiros que as domina.

E que perderam para a Petrobrás a competição para descobrir os campos gigantes do pré-sal brasileiro, como foi o caso da Shell, em 2001, quando desistiu de aprofundar um poço que perfurava a camada de sal, na Bacia de Santos – por incompetência técnico-científica ou por postura financista/rentista dos gestores de seu investimento – deixando embaixo cerca de 10 bilhões de barris – e devolvendo o bloco á ANP.

Este campo foi depois descoberto pela Petrobrás, que é sua atual operadora. Quer dizer, estamos passando às empresas privadas estrangeiras, que perderam a competição para descobri-lo, um bem estratégico cujo aproveitamento é decisivo para nosso desenvolvimento autônomo, como nação soberana.

No caso das refinarias, a mesma situação: serão vendidas junto com os mercados que lhes consomem o produto, pois esta foi a racionalidade de suas construções – pela Petrobrás/Povo Brasileiro – para o abastecimento regional integrado de combustíveis em todas as regiões do território nacional. As empresas/instituições compradoras não enfrentarão competidores nestes mercados, projetadamente cativos para sua produção.

E mais, com projetos originais de refino completamente modificados, ao longo de décadas, com melhorias contínuas, engenheiradas pela área de refino da Petrobrás em conjunto com o nosso centro de pesquisa e desenvolvimento (Cenpes) e que exigiram pesados investimentos para se tornarem realidade. Tudo acompanhado de esforço permanente de formação, treinamento e capacitação profissional que levou estas unidades industriais à excelência operacional de eficiência e segurança que hoje as caracteriza.

Em suma, esta iniciativa de esquartejar e privatizar/desnacionalizar o Sistema Petrobrás é criminosamente lesiva aos interesses brasileiros, ao desenvolvimento nacional integral, ao bem-estar e à qualidade de vida do povo brasileiro, à soberania nacional.

Não pode ser aceita pela sociedade brasileira, há que ser totalmente rejeitada e ter revertidas todas as operações já realizadas neste sentido.

 

Guilherme Estrella
* Geólogo, ex-diretor da Petrobrás. Artigo publicado originalmente em Monitor Mercantil.

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