Os 30 anos completados em outubro tornam a Constituição a terceira mais longeva da história do país. A data, além de celebrada, serve também para que sejam reconhecidos os efeitos positivos de ordem política, jurídica, econômica e, sobretudo, social, que, com a inserção e garantia dos direitos humanos fundamentais e dos direitos sociais, consolidaram a transição de um regime autoritário para o Estado Democrático de Direito.
Na seara tributária e financeira, o texto buscou reconstituir o sistema tributário nacional de acordo com as necessidades de um Estado que se redesenhava. Com uma revisão na redistribuição das competências tributárias entre os entes federativos e a devida repartição de receitas financeiras, solidificou a autonomia de estados e municípios, minimizando desequilíbrios regionais e ampliando o rol dos direitos e das garantias dos contribuintes. Paralelamente, estabeleceu amarras ao poder estatal de tributar, concedendo ao Direito Financeiro e Tributário a efetividade dos valores de segurança jurídica, de liberdade e de igualdade.
A Carta também trouxe benefícios ao Direito Financeiro, que sofreu uma verdadeira constitucionalização. Antes um campo jurídico vislumbrado apenas como uma especialidade envolta por números e tecnicismo contábil e formalista, tomou forma a partir de princípios e valores constitucionais, evidenciando o protagonismo do aspecto jurídico-constitucional, até então coadjuvante nas discussões financeiras.
Nesse contexto, ao estabelecer os objetivos do Estado brasileiro, a Carta instituiu o sistema de normas financeiras, necessário e suficiente para realizá-los, trazendo hibridismo e constante tensão entre valores sociais e os liberais, os quais influenciam sobremaneira, até os dias atuais, a atuação do Estado. E assim, ao conceder maior efetividade a valores sociais constitucionalmente previstos, criou inúmeros deveres que, para serem implementados, demandam grande volume de recursos financeiros — originários essencialmente dos tributos.
Assim, para atender a todas as demandas, os governos se deparam com o dilema de ter, de um lado, a pressão e o apelo social para o aumento dos gastos públicos e, de outro, as limitações financeiras e a necessidade de se encontrar fontes alternativas para custear novas despesas, além de se evidenciar as distorções advindas da má gestão do erário.
A expectativa de mudança de postura do gestor público infelizmente ainda é frustrada ou convertida em pesadelo, com inúmeras unidades da federação incapazes de pagar salários e aposentadorias de seus servidores, honrar os contratos de seus fornecedores e garantir minimamente serviços públicos essenciais.
Por outro lado, o que se vê hoje são dezenas de bilhões de reais em renúncias fiscais sem a devida compensação financeira. As despesas com pessoal dos entes perigosamente se aproximam (ou mesmo ultrapassam) os limites previstos em lei. O desequilíbrio financeiro e o descumprimento de metas fiscais tornam-se rotina e levam a um gigantismo da dívida pública que vai além do razoável, trazendo reflexos preocupantes quanto à equidade intergeracional. A falta de planejamento e de respeito às leis orçamentárias as tornam peças de ficção, resultando em desemprego, retrocesso no desenvolvimento do país e, principalmente, falta de perspectiva de um futuro melhor.
O fato é que sempre houve mais preocupação com a arrecadação das receitas públicas, especialmente a tributária, do que com sua gestão e aplicação. Apesar dos inúmeros avanços nas finanças públicas neste período, há um retrocesso momentâneo, em que se ouve expressões como “pedaladas fiscais”, “contabilidade criativa” e “manobras financeiras” — aliadas a um potencial desequilíbrio fiscal e incapacidade de cumprimento de metas fiscais.
Alguns números ilustram esse quadro. A carga fiscal, 22,4% do PIB em 1988, é hoje de 33% do PIB. Nos últimos quatro anos, o Brasil vem acumulando déficits primários: R$ 20,5 bilhões em 2014; R$ 126,4 bilhões em 2015; R$ 167,4 bilhões em 2016; e R$ 126 bilhões em 2017. Ademais, estima-se que o governo federal concederá benefícios fiscais ao longo deste ano de mais de R$ 300 bilhões em tributos, sem que haja mecanismo claro de controle do retorno efetivo para a sociedade.
Neste ano de 2018, a dívida pública em relação ao PIB chegou a quase 80%, 30% a mais que a média de economias emergentes. Assim, sem a diminuição de gastos ou aumento de arrecadação, a tendência é de descontrole do endividamento público, que poderá ultrapassar os 100% do PIB (R$ 6,6 trilhões em 2017).
O reflexo da atual desordem nas contas públicas se evidencia na realidade brasileira: na educação, com 11,5 milhões de analfabetos; na segurança pública, com mais de 64 mil assassinatos por ano; e na saúde, no déficit de mais de 13 mil leitos.
Na seara fiscal, o orçamento público ainda é pouco conhecido pela população. Apesar disso, desempenha o papel de um dos mais relevantes instrumentos de planejamento e controle financeiro, contemplando a participação conjunta do Poder Executivo e do Legislativo, tanto na sua elaboração e aprovação, como também no controle da sua execução, configurando um instituto fundamental no Estado Democrático de Direito contemporâneo. Nele se revelam as políticas públicas adotadas para se atender às necessidades e interesses da sociedade, conjugando-as com as pretensões e possibilidades de realização dos cofres públicos.
Neste aspecto, o orçamento público pode passar a constituir uma ferramenta de mudança social, sendo o cidadão convocado a participar ativamente deste fundamental processo, no que hoje comumente é denominado cidadania fiscal. Mas há muito ainda o que evoluir, para se retomar o ciclo virtuoso de mudanças institucionais, a fim de consolidar a sustentabilidade e estimular o desenvolvimento econômico e social.
Assim sendo, nestes 30 anos há um panorama perfeito para o debate e a reflexão à luz dos valores que a Justiça fiscal reclama. Um cenário repleto de acertos e desacertos, com propósitos dignos de aplausos e outros com desígnios eivados de máculas imperdoáveis, cujas consequências, em alguns casos, chegam até mesmo a afrontar direitos e garantias fundamentais.
O conturbado momento econômico e político exige suplantar as divisões partidárias e ideológicas para permitir uma profunda reflexão e mudança na nossa cultura fiscal. Se a tributação é o preço da liberdade na sociedade moderna e o orçamento é o reflexo da atividade estatal, o respeito às leis orçamentárias com responsabilidade fiscal é instrumento republicano de mudança social, de ordem e de progresso.
* Fernanda Nogueira é sócia do Machado Nogueira Advogados