Ex-prefeita de Santos avalia proposta de desestatização do governo federal que colocará Autoridade Portuária do maior porto do País em mãos privadas.
No momento em que o maior porto da América Latina completa 130 anos, nada mais justo do que entender e perceber o Porto de Santos, que fica às margens do belíssimo litoral paulista, para além dos negócios e da economia capitalista. Entende-se melhor uma atividade econômica como a portuária sabendo das lutas e dos trabalhadores que constroem essa riqueza que rende cifras trilionárias aos donos de empresas, transportadoras etc.
Telma de Souza hoje é vereadora de Santos, mas também foi deputada federal e estadual, e prefeita entre 1989 e 1992.
Imagem: reprodução do documentário “Santos, 28 de fevereiro – A vitória da resistência”.
Nesse sentido, entrevistamos a vereadora santista Telma de Souza (PT) sobre a relação da cidade de Santos com o seu porto e a proposta de desestatização do governo federal, nesta segunda-feira (7/2). Vale muito falarmos de trabalhadores e suas lutas neste momento em que se comemora os 130 anos do Porto de Santos. Tem ações, palavras e ideias que nunca ficam velhas, permanecem no tempo. É o caso da entrevista “Os oito dias que abalaram o Porto e a cidade de Santos”, concedida pela ex-prefeita à jornalista Vera Gasparetto, em 2020.
Como a senhora, que já esteve à frente da Prefeitura Municipal de Santos (1989-1992), vê o atual programa de desestatização do governo federal para o Porto de Santos?
A desestatização do Porto de Santos trará riscos significativos para as nossas cidades, para os trabalhadores e para a economia local. Na prática, este é um processo de privatização da Autoridade Portuária, a antiga Codesp, que está sendo feito de maneira pouco transparente, nada participativa e absolutamente impositiva, com efeitos que podem ser irreversíveis e muito danosos até para o Brasil, já que o Porto de Santos responde por 30% da nossa balança comercial.
A proposta de privatização é enganosa e busca confundir a população ao justificar que o processo resultará em investimentos bilionários, atrairá novos negócios e irá gerar milhares de empregos, assim como a esperada ampliação da eficiência e redução de custos.
O que se percebe é que a privatização da Autoridade Portuária vai concentrar as decisões em um ente privado, que terá poder de regular interesses diversos entre o setor público e outros agentes privados no condomínio portuário. Nesse rol de superpoderes, a nova administradora privada poderá ter uma excessiva liberdade para impor condições contratuais, reajustes tarifários, mudanças de infraestrutura e de regulamentos, possivelmente de forma unilateral.
O governo federal fala que a desestatização é para trazer investimentos em infraestrutura. Como a senhora vê essa justificativa?
Telma de Souza - As alegações do governo são que as obras e as manutenções de infraestrutura passarão a ser custeadas pelos investimentos que a empresa escolhida terá de fazer, como dragagem do canal de navegação, túnel submerso entre margens e malha rodoferroviária. Contudo, os acessos do maior porto do Brasil têm caráter de soberania nacional, estratégicos para o País, e devem seguir a lógica dos interesses brasileiros, nunca de apenas uma empresa. Até por isso, os principais portos do mundo utilizam o modelo de gestão chamado landlord port, ou seja, quando o Estado é responsável pelos acessos e pela gestão do parque portuário, enquanto a iniciativa privada faz a operação, por meio dos arrendamentos.
Não bastasse, há de se questionar qual o real interesse do governo federal em conceder uma empresa que, nos dois últimos anos, mesmo em meio a uma pandemia, lucrou R$ 200 milhões, com um ativo que não para de bater recordes operacionais, em razão da conjuntura internacional que favorece os produtos movimentados, mesmo com a economia interna estagnada?
Em sua opinião, está se tendo transparência e democratização nesse debate?
Telma de Souza - Devemos analisar, ainda, o processo de publicização da tal desestatização. Fora lançada uma consulta pública, pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), de 31 de janeiro a 16 de março, mas restrita a players econômicos, sem possibilidade de participação da população e de trabalhadores. Essa consulta deve ser restringir ao que está no documento, não podendo haver contribuições que divirjam da privatização. Haveria o medo de uma maioria das inscrições ser contrária à privatização? Também não há o agendamento de uma audiência pública, sequer, para debater uma mudança estruturante tão grande numa atividade fundamental para a nossa região. Isso se chama autoritarismo.
Perde-se uma imensa oportunidade de aprofundar a discussão para resgatar conceitos como o papel deliberativo do Conselho de Autoridade Portuária (CAP), que, sim, era a voz da força da regionalização nas decisões portuárias, dialogando, cobrando, priorizando os interesses da coletividade. Também não se discutiu os impactos do novo Plano de Desenvolvimento e Zoneamento (PDZ) do Porto, que colocará terminais com atividades contaminantes e impactantes em meio à zona urbana, sem qualquer discussão com as prefeituras e os munícipes.
Por fim, temos de compreender que as atividades portuárias são feitas nas cidades, com impactos positivos e negativos. Os positivos devem ser sempre potencializados e os negativos, mitigados, com diálogo, transparência e inovação. Sobretudo, é preciso ter responsabilidade com um Porto que representa a força da economia de todo um País, que precisa ser sustentável, promover riquezas e gerar empregos, mas, sempre, com respeito às pessoas e ao seu entorno.
A sua trajetória é muito ligada ao Porto. Pode nos falar como você vê a relação entre porto e cidade em Santos?
Telma de Souza - Sou filha e neta de estivadores. Todos conhecem a minha trajetória em defesa do Porto e seus trabalhadores. Acredito na potência do nosso porto para a Cidade, para a região e para o País.
Então prefeita, Telma de Souza em ato dos portuários demitidos em frente à Prefeitura.
Imagem: reprodução do documentário “Santos, 28 de fevereiro – A vitória da resistência”.
O Porto de Santos é o maior do Hemisfério Sul, indutor do nosso desenvolvimento e estratégico para o Brasil. A soberania nacional do Porto de Santos deve ser prioridade em qualquer contexto.
A relação porto e cidade deve ser sustentável. Desenvolvimento econômico e inclusão social devem caminhar lado a lado, em benefício das pessoas. Fui presidente da Subcomissão de Portos durante o Governo Lula e conquistamos recursos para obras, como as avenidas perimetrais, porque o desenvolvimento do Porto precisa estar integrado à vida da cidade. Nos Governos de Lula e Dilma, quando chegamos a ser a sétima economia do mundo e geramos mais de 15 milhões de empregos, o Porto de Santos foi essencial neste processo. O nosso Porto precisa reconquistar a sua soberania e Santos, o seu lugar na história.
E como deve ser essa relação em termos sociais, ambientais, culturais, políticas, econômicas, sanitárias?
Telma de Souza - Os portos são um patrimônio para qualquer cidade do mundo. Santos e o seu porto têm uma relação que se confunde, desde a sua formação, ainda na época dos trapiches. O nosso porto é ainda mais especial por ser fundamental para a economia do País e essa responsabilidade nacional é motivo de orgulho para todos nós.
Quando fui prefeita, iniciei um movimento pela regionalização do Porto. Creio que é o caminho ideal, ampliando poder para o Poder Público local garantir as prioridades da comunidade, como emprego, negócios e qualidade de vida, mas há de se ter mecanismos para assegurar a sua importância estratégica para a soberania nacional.
Um porto como o nosso interage com a economia mundial e, também por isso, não pode ficar apenas com o ônus. É imprescindível que sejam dadas garantias de emprego, qualificação, atração de novos negócios na área, agregação de valor na cadeia da carga, tudo com sustentabilidade.
Por exemplo: as cidades precisam ter autonomia para exigir meios de proteção ambiental na atividade portuária, tendo protagonismo na definição das técnicas operacionais, impedindo, por exemplo, a dispersão de material particulado no ar.
É necessário também preservar o direito ao capital humano local. A modernização é extremamente bem-vinda, mas ela só se justifica se houver a inclusão da mão de obra local, com condições dignas de trabalho e com oportunidades de qualificação para o futuro.
Hoje há um desequilíbrio nessa relação, em que o trabalhador fica em desvantagem. São necessários ajustes para que esse contingente seja protagonista e prioritário. Isso só acontecerá com a união entre a classe trabalhadora e as forças que militam na sua defesa para, de uma maneira organizada, interagir e articular mudanças, mesmo com o poder central portuário ligado a um governo federal tendencioso e exclusivamente voltado ao capital, em detrimento aos trabalhadores e às medidas de proteção social.
É hora de retomar o desenvolvimento social, para que tenhamos um porto competitivo, com a garantia dos direitos das cidades que o abrigam e, acima de tudo, com trabalhadores valorizados.
Consciente do que representa o Porto de Santos para o mundo, fui a primeira pessoa pública desta cidade a me preocupar com a chegada do novo coronavírus no Brasil pelo Porto. O triste episódio que tivemos com o sarampo no ano passado, e que também cheguei a alertar, nos serviu de experiência. É um fenômeno mundial e absolutamente novo. Por isso, é necessário o investimento expressivo na ciência para sabermos como lidar com este e os próximos fenômenos que poderão surgir para construirmos as políticas públicas necessárias.