No início da década de 1990, o maior porto do País foi surpreendido com uma demissão em massa de trabalhadores da administradora do porto. A cidade só voltou à normalidade com o cancelamento de todas as dispensas.
Neste 1º de maio, Portogente resgata uma grande história envolvendo milhares de trabalhadores, ou melhor, toda uma cidade que se mobilizou para defender o direito ao trabalho de mais de cinco mil portuários. Foi na cidade onde abriga o maior porto do Hemisfério Sul, o Porto de Santos. Foi na cidade do litoral paulista, Santos.
Portuários em frente ao Paço Municipal de Santos. Imagem: reprodução do
documentário “Santos, 28 de fevereiro – A vitória da resistência”.
Em 20 de fevereiro de 1991, há quase 30 anos, 5.372 trabalhadores portuários foram demitidos por telegramas vindos de Brasília por ordem do então presidente Fernando Collor de Mello que, um ano depois, seria tirado da Presidência da República por impeachment. A demissão, assinada pelo então ministro da Infraestrutura Ozires Silva, atingia os trabalhadores que estavam há 22 dias em greve por melhores salários.
A notícia não só abalou os portuários e suas famílias, mas toda a cidade. À época, a prefeita era Telma de Souza (PT), nascida e criada em Santos, filha e neta de estivadores e da funcionária pública e ex-vereadora Hilda Augusto de Souza.
Então prefeita, Telma de Souza em ato dos portuários demitidos em frente à Prefeitura.
Imagem: reprodução do documentário “Santos, 28 de fevereiro – A vitória da resistência”.
Como lembra a ex-prefeita, hoje vereadora de Santos, o País vivia um período de super inflação e a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) – presidida, à época, por Paulo Peltier – era uma das principais empregadoras da região, com mais de 10 mil trabalhadores. Alguns trabalhadores receberam dois telegramas de demissão e até portuários falecidos estavam na lista das dispensas.
Telma de Souza decretou calamidade pública em 26 de fevereiro e todos foram à luta pela anulação das demissões. A cidade se vestiu de resistência. As mulheres também foram para frente de batalha, permanecendo em vigília, dia e noite, com os trabalhadores demitidos e apoiadores em frente à sede administrativa da Codesp, na Avenida Rodrigues Alves.
No dia 28 de fevereiro, a cidade praticamente parou em solidariedade aos portuários e suas famílias e exigindo a anulação das demissões. Comércio, bancos, escolas, transporte coletivo pararam. O movimento alcançou a anulação das dispensas.
Portuários vigília em frente à sede da Codesp. Imagem: reprodução do documentário
“Santos, 28 de fevereiro – A vitória da resistência”.
Confira a entrevista especial com Telma de Souza que, além de falar da luta pela readmissão dos mais de cinco mil portuários da Codesp, fala da relação porto e cidade, o papel como indutor da economia da região e do País, e ainda sobre gestão portuária.
Qual foi o papel da Prefeitura naquele momento e quais implicações teve no desenvolvimento da cidade?
A Prefeitura assumiu o seu protagonismo na luta para resgatar os postos de trabalhos de 5.372 portuários que foram demitidos pelo Governo Collor, de uma só vez, de forma totalmente arbitrária naquele fevereiro de 1991. Eu era prefeita de Santos e não podia ficar omissa. Vivíamos um período de super inflação, no Governo Collor, e a Codesp era uma das principais empregadoras da Cidade, com pouco mais se 10 mil trabalhadores. E 5.372 estavam sendo dispensados.
Decretei calamidade pública porque o impacto social na Cidade foi muito grande. Era preciso realocar recursos para garantir a subsistência dessas famílias. Juntamos esforços com o Poder Legislativo e os sindicatos diversos. Com o Fórum da Cidade, sensibilizamos outros setores: o Judiciário, o terceiro setor, universidades, comerciantes e toda sociedade civil. Paralisamos a Cidade e nosso movimento teve repercussão nacional.
Mulheres dos demitidos participaram em peso da resistência. Imagem: reprodução do
documentário “Santos, 28 de fevereiro – A vitória da resistência”.
Fui até Brasília participar de audiências com os ministros da Justiça, Jarbas Passarinho, e o ministro do Trabalho, Antônio Magri, para dizerem ao presidente Collor que resistiríamos até reconquistarmos os postos de trabalho. Quando retornei, o ministro Jarbas Passarinho me ligou para informar que os trabalhadores seriam readmitidos. A data de 28 de fevereiro se tornou o Dia da Resistência Portuária. No ano seguinte, inaugurei uma escola com este nome, no Saboó, que é um reduto de trabalhadores do Porto.
A sua trajetória é muito ligada ao Porto. Pode nos falar como você vê a relação entre porto e cidade em Santos?
Sou filha e neta de estivadores. Todos conhecem a minha trajetória em defesa do Porto e seus trabalhadores. Acredito na potência do nosso porto para a Cidade, para a região e para o País.
O Porto de Santos é o maior do Hemisfério Sul, indutor do nosso desenvolvimento e estratégico para o Brasil. A soberania nacional do Porto de Santos deve ser prioridade em qualquer contexto.
A relação porto e cidade deve ser sustentável. Desenvolvimento econômico e inclusão social devem caminhar lado a lado, em benefício das pessoas. Fui presidente da Subcomissão de Portos durante o Governo Lula e conquistamos recursos para obras, como as avenidas perimetrais, porque o desenvolvimento do Porto precisa estar integrado à vida da cidade. Nos Governos de Lula e Dilma, quando chegamos a ser a sétima economia do mundo e geramos mais de 15 milhões de empregos, o Porto de Santos foi essencial neste processo. O nosso Porto precisa reconquistar a sua soberania e Santos, o seu lugar na história.
E como deve ser essa relação em termos sociais, ambientais, culturais, políticas, econômicas, sanitárias?
Os portos são um patrimônio para qualquer cidade do mundo. Santos e o seu porto têm uma relação que se confunde, desde a sua formação, ainda na época dos trapiches. O nosso porto é ainda mais especial por ser fundamental para a economia do País e essa responsabilidade nacional é motivo de orgulho para todos nós.
Quando fui prefeita, iniciei um movimento pela regionalização do Porto. Creio que é o caminho ideal, ampliando poder para o Poder Público local garantir as prioridades da comunidade, como emprego, negócios e qualidade de vida, mas há de se ter mecanismos para assegurar a sua importância estratégica para a soberania nacional.
Um porto como o nosso interage com a economia mundial e, também por isso, não pode ficar apenas com o ônus. É imprescindível que sejam dadas garantias de emprego, qualificação, atração de novos negócios na área, agregação de valor na cadeia da carga, tudo com sustentabilidade.
Telma de Souza hoje é vereadora de Santos, mas também foi deputada federal e estadual.
Imagem: reprodução do documentário “Santos, 28 de fevereiro – A vitória da resistência”.
Por exemplo: as cidades precisam ter autonomia para exigir meios de proteção ambiental na atividade portuária, tendo protagonismo na definição das técnicas operacionais, impedindo, por exemplo, a dispersão de material particulado no ar.
É necessário também preservar o direito ao capital humano local. A modernização é extremamente bem-vinda, mas ela só se justifica se houver a inclusão da mão de obra local, com condições dignas de trabalho e com oportunidades de qualificação para o futuro.
Hoje há um desequilíbrio nessa relação, em que o trabalhador fica em desvantagem. São necessários ajustes para que esse contingente seja protagonista e prioritário. Isso só acontecerá com a união entre a classe trabalhadora e as forças que militam na sua defesa para, de uma maneira organizada, interagir e articular mudanças, mesmo com o poder central portuário ligado a um governo federal tendencioso e exclusivamente voltado ao capital, em detrimento aos trabalhadores e às medidas de proteção social.
É hora de retomar o desenvolvimento social, para que tenhamos um porto competitivo, com a garantia dos direitos das cidades que o abrigam e, acima de tudo, com trabalhadores valorizados.
Qual deve ser o papel dos gestores públicos e portuários no combate à Covid-19? Já é possível propor políticas públicas a médio e longo prazo?
Os gestores públicos e portuários devem ter, acima de tudo, o compromisso com a vida humana. As recomendações da Organização Mundial de Saúde [OMS] devem ser seguidas à risca.
Consciente do que representa o Porto de Santos para o mundo, fui a primeira pessoa pública desta cidade a me preocupar com a chegada do novo coronavírus no Brasil pelo Porto. O triste episódio que tivemos com o sarampo no ano passado, e que também cheguei a alertar, nos serviu de experiência.
Na última semana de janeiro, antes mesmo de terminar o recesso parlamentar, solicitei uma reunião urgente com o secretário de Saúde, Fábio Ferraz, porque a Organização Mundial de Saúde havia divulgado a classificação do risco internacional da então epidemia de coronavírus, aumentando o status de "moderado" para "elevado". Santos é uma porta de entrada e saída para o mundo.
Clique aqui para assistir ao documentário "Santos, 28 de fevereiro - A vitória da resistência."
Naquela ocasião, o secretário me relatou que os dois hospitais estaduais da Baixada, o Guilherme Álvaro, em Santos, e o Emílio Ribas II, em Guarujá, estariam à disposição caso fosse necessário utilizá-los para isolamento.
É um fenômeno mundial e absolutamente novo. Por isso, é necessário o investimento expressivo na ciência para sabermos como lidar com este e os próximos fenômenos que poderão surgir para construirmos as políticas públicas necessárias.