“Um ambiente de trabalho onde homens e mulheres possam desenvolver as mesmas atividades sem discriminação ou opressão”, sonha Bete Sacramento
Marcando o mês da mulhere o Dia Internacional da Mulher, celebrado neste 8 de Março, Portogente traz uma entrevista que trata de temas sensíveis e necessários nesses tempos tão ásperos para a humanidade: o sexismo, o racismo, a xenofobia e as questões de classe.
Elizabete de Jesus Sacramento, a Bete, é daquelas mulheres que passam na vida e marcam. Sua presença e voz traz a potência de mulheres que constroem seu espaço no mundo e não se conformam com o lugar reservado historicamente às mulheres: o silêncio, o recato, a vida privada. Ela é mulher preta, trabalhadora petroleira, baiana e sindicalista.
Sua trajetória expressa a vida de grande parte das mulheres brasileiras: marcada por dificuldades econômicas, acesso à educação feito com muita luta e atravessada por questões de classe, raça, gênero e território. Revela também as ambiguidades da vida que é reservada com a vida que se quer construir: a trajetória das mulheres, atravessadas por casamento, separação, filhas, a vida privada, o cuidado com a família etc. A tripla jornada de trabalho é uma constante na vida das mulheres, aumentando os esforços para conquistar objetivos de formação, profissionais e do ativismo.
Particularmente, Bete destaca o preconceito e a xenofobia pelo fato de ser baiana, o racismo por ser preta, que se soma ao fato de ser mulher numa empresa majoritariamente masculina (17% do corpo funcional da Petrobras são mulheres), que vive com suas capacidades sendo colocadas a prova.
Bete nos conta que, ainda que a Petrobras seja uma empresa estatal e com preocupações voltadas para a igualdade de gênero, ainda são marcantes sobre as mulheres casos de assédio moral e sexual no dia a dia, a dificuldade em ocupar cargo de gestão e respeito por suas qualidades profissionais. Ela avalia que essas relações refletem relações patriarcais, marcadas pela interseccionalidade de opressões: “Se é difícil para as mulheres, pior ainda se essas forem pretas, já que fogem ao padrão físico idealizado pela sociedade para a ocupação de determinados espaços.”
Confira a entrevista completa, que traz uma linda história de vida e um conteúdo que nos ajuda a construir sobre relações solidárias e compreensivas entre os seres humanos.
Portogente – Bete, fale-nos sobre sua trajetória pessoal e de formação.
Tenho 41 anos, sou mulher, negra, filha de um vigilante e uma vendedora autônoma (sacoleira). Nascida e criada no subúrbio ferroviário de Salvador (Bahia) com meu irmão caçula e minha irmã mais velha. Experimentamos as restrições direcionadas à população periférica, mas sem nunca nos faltar o pão de cada dia, mesmo meus pais, no início do casamento, tendo que dividir um ovo para os dois, batalharam muito para não nos deixar faltar nada e continuarmos nossos estudos, já que ambos não conseguiram concluir o fundamental e o ensino médio. Hoje, sou petroleira, divorciada por duas vezes e mãe de duas filhas (de 21 e 10 anos), frutos dessas relações, e com quem moro atualmente.
Na formação, fui estudante da rede pública de educação, sempre me destaquei nos estudos, sendo a única da família a acessar, aos 15 anos, a Escola Técnica Federal da Bahia (ETFBA) – atual IFBA –, para o curso de Técnica Química. Com 19 anos, com recurso que recebia do estágio, paguei meu vestibular (um ano após meus colegas ingressarem, pois meus pais não tinham dinheiro). Também fui a primeira da família (considerando as gerações anteriores e atuais) a entrar numa faculdade, onde cursei Química na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Casei aos 20 anos e logo fui mãe. Parei os estudos e ao retomar precisei trabalhar para manter a faculdade e sustentar minha filha. Ser mãe, esposa, professora de química, física e matemática na rede estadual foi um grande desafio para concluir meu curso superior, em 2006.
Esses fatores tiveram implicações sobre sua trajetória profissional?
Ainda em 2006, já divorciada do primeiro casamento, morando na casa de meus pais com minha filha e dividindo um quarto com meu irmão, fui aprovada em 4° lugar para a vaga de Técnica Química de Petróleo, no concurso da Petrobras Transporte (Transpetro), empresa do sistema Petrobras, responsável pela logística e armazenamento de petróleo e seus derivados. Contratada em 2008, deixei de ser professora para ingressar numa das maiores empresas estatais e que tinha como projeto alavancar a economia nacional levando o desenvolvimento a todo o Brasil. Com certeza, foi um divisor de águas em minha vida. Durante o curso de formação no Rio de Janeiro, me destaquei com as melhores notas da turma, jogando por terra os preconceitos que sofri ao chegar por ser baiana, não bastando o que já passo por ser uma mulher preta.
Em 2014, já com seis anos de empresa, depois de alguns embates com dirigentes, fui convidada a conhecer e me aproximar do movimento sindical. Me identifiquei com a luta e após três anos militando como delegada de base, em 2017 me tornei diretora liberada, assumindo a Secretaria Geral do Sindicato dos Petroleiros da Bahia (Sindipetro/BA) e a executiva da Confederação Nacional dos Químicos (CNQ). Atualmente sou responsável pelo setor financeiro do Sindicato.
O fato de ser mulher teve consequências na sua profissão de técnica química?
Na atividade técnica química, apesar de ser considerada uma “função feminina" na forma machista de segregar os gêneros, os homens não deixam de ter privilégios quando dividem os espaços conosco.
O fato de trabalhar numa empresa estatal como a Petrobrás tem impactos nas questões de gênero e raça na profissão?
A empresa estatal, como qualquer outra, traz os mesmos problemas de gênero e raça. Entretanto, na Petrobrás, que possui apenas 17% de mulheres em seu corpo funcional, as questões de gênero são potencializadas, principalmente na área operacional na qual a presença feminina é muito menor. Assédio moral e sexual ainda são fortes no dia-a-dia. Ocupar cargo de gestão é uma peregrinação. Se é difícil para as mulheres, pior ainda se essas forem pretas, já que fogem ao padrão físico idealizado pela sociedade para a ocupação de determinados espaços. Vemos os reflexos da construção patriarcal em algumas cláusulas do Acordo Coletivo de Trabalho (ACT), na ausência de banheiro feminino em alguns setores e a confecção de farda com cortes masculinos, o que caracteriza a visão de uma empresa construída sob a ótica masculina, mesmo sendo uma estatal.
Quais são as principais pautas que as mulheres e as chamadas 'minorias' travam junto à Petrobrás e como se organizam para o feito?
Os assédios moral e sexual estão no dia a dia. Para além disso, é melhorar a percepção do papel social de gênero, principalmente, através do ACT, no qual já tivemos avanço no auxílio creche e ampliação da licença paternidade para homens e redução da carga horária para lactantes. Tivemos também a aprovação da confecção de uniformes femininos, ajudando a internalizar que a área operacional também pode ser ocupada por mulheres, se assim elas quiserem. Quando a presidenta Dilma ocupou a presidência e colocou uma mulher na presidência da Petrobras, foi um momento para as mulheres petroleiros fazerem avançar suas pautas, criando, em 2012, o Coletivo Nacional de Mulheres Petroleiras, que reúnem anualmente para definição de propostas a serem defendidas em mesa de negociação, onde está contemplada a presença de mulheres.
Você nota algum diferencial em relação a iniciativa privada? No seu olhar, como você sonha e projeta as relações de trabalho dentro de uma empresa pública?
A principal diferença é não ser rejeitada nas funções que se candidata pelo fato de ser mulher ou mulher preta. Na iniciativa privada eles reprovam na chegada do currículo, caso o gestor entenda que em determinada função uma mulher “não tem capacidade” física ou intelectual para trabalhar. Num concurso, vale a maior nota.
Se não descontruirmos a ideia patriarcal quanto aos papeis de gênero, teremos dificuldades em implementar nossas pautas, independente de ser pública ou privada. Se o governo for conservador, mais difícil será implementar políticas de igualdade de gênero numa estatal. Entretanto, eu sonho com um a empresa que nos permita um ambiente de trabalho onde homens e mulheres possam desenvolver as mesmas atividades sem discriminação ou opressão.