Especial Portogente
A recente tragédia de Brumadinho, em Minas Gerais, trouxe, após três anos de outra tragédia na também mineira Mariana, o nome da mineradora Vale às manchetes da imprensa mundial. Sob essa "esteira" triste, Portogente quis entender como é a vida de quem está próxima às atividades da mineradora fora do País. Por isso, conversamos com Dulce Brás Impene Combo, moçambicana, farmacêutica de formação e docente da Faculdade de Ciências da Saúde na Universidade Zambeze e ativista social há mais de 10 anos. Ela conta que a mineradora Vale foi instalada em Tete (centro de Moçambique) em 2007, mas somente entre 2010 e 2011 começou o processo de reassentamento das comunidades, removidas da área onde a empresa realizou as instalações para a mineração de carvão. Em 12 anos de operação o meio ambiente da região sofre danos irreparáveis devido à poluição e contaminação da biodiversidade e das pessoas que vivem na região.
As fotos desta entrevista foram enviadas por Dulce Brás Impene Combo.
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Nesse processo de troca de informações com a reportagem especial do Portogente, Dulce precisou interromper a comunicação, no dia 8 de março último, devido às tempestades que afetam Moçambique, Malawi e Zimbábue, provocadas, segundo a imprensa internacional, pela passagem do ciclone Idai, que deixou mais de 1000 mortos, centenas de desaparecidos e desabrigados.
A cidade da Beira, em Moçambique, foi a região mais afetada. Dulce, surpreendentemente, conta que parte das inundações foi provocada pela abertura de uma comporta da hidrelétrica Cahora Bassa, instalada em Moçambique, que causou as inundações ao encontrar-se com o refluxo dos grandes rios: Zambeze e Revúboé. “Estamos a passar pelo pior momento climático no país, em particular a região central à minha cidade teve inundações e há dias tivemos o ciclone numa província próxima, mas ainda estamos sob alerta”, relata Dulce, para quem a exploração sem limites do meio ambiente impacta o clima e destrói vidas.
Portogente - Quais os benefícios que a Vale trouxe a Moçambique ao se instalar em Tete?
Dulce Impene Combo – Há a questão da empregabilidade, pois surgiram empregos. Vários projetos sociais foram levados a cabo, mas muito deles não foram implementados como deveriam. As promessas feitas no início não foram realizadas até então. A Vale emprega mais de 3 mil trabalhadores, mas saliento que a maior parte da mão de obra não é moçambicana, porque não havia a qualificação das pessoas para as competências exigidas pela Vale. A maioria vem de outras partes do país, principalmente de Maputo (capital do país). No ato da consulta uma série de promessas foram feitas, desde a questão de empregabilidade para pessoas nativas, como é uma das questões muito polêmicas, assim como a questão de impulsionar a produtividade em nível local, por que a Vale seria alimentada por alimentos produzidos pela comunidade. Entretanto a maior parte dos alimentos que adquire vem de fora do país, porque aqui só tem pequenos agricultores. Isso gerou uma série de expectativas frustradas no seio das comunidades que criaram uma série de negócios pensando que teriam um grande mercado e nada aconteceu.
Portogente – O que aconteceu em relação aos reassentamentos das famílias que viviam na área onde a Vale opera hoje em Tete?
Dulce Impene Combo - A Vale havia definido diferentes tipos de reassentamentos: o urbano, que está na comunidade 25 de setembro; e o rural, que está na comunidade de Catembe. Entretanto, a maior parte dos planos de reassentamento não foram cumpridos, agravados pelas más condições do solo para a agricultura nas zonas reassentadas. No processo de reassentamento era suposto realizar uma consulta comunitária (isso é previsto na Lei de Terras de Moçambique), mas no ato da instalação da Vale somente algumas lideranças participaram, e essas não informaram tudo ao conjunto da comunidade. É por isso que até hoje sente-se o impacto e a fragilidade de não existir a consulta comunitária, sobretudo na região de Moatize. Houve grandes falhas no processo de consulta comunitária para o reassentamento da Vale, causando grandes impactos, principalmente para as mulheres que tiveram grande dificuldade de serem incluídas nos processos de negociação e no recebimento das indenizações.
Portogente – Onde houve quebra de acordo no processo de reassentamento?
Dulce Impene Combo - Eles prometeram dar condições de vida de acordo com o regulamento de reassentamento que foi aprovado em Moçambique, mas que na altura da instalação da Vale não existia. Eles tiveram que usar os padrões recomendados pelo Banco Mundial e uma das questões é que ao deslocar as pessoas para um reassentamento tem que garantir condições de vida iguais ou superiores às anteriores do seu território de origem. A Vale prometeu condições superiores, casas de qualidade. Durante esse processo as comunidades não ficaram satisfeitas com a qualidade das infraestruturas, sobretudo no que tange às casas que não têm consistência na estrutura e sem qualidade. Na comunidade de reassentamento urbano 25 de setembro, a Vale teve que reformar as casas porque estavam rachando, o que não garantia nenhuma condição de vida.
Para além das comunidades reassentadas, existem comunidades circunvizinhas à área de exploração mineira que não fazem parte da área de concessão da Vale, mas que sofrem o impacto negativo da mineração. O que restou foi a má qualidade das casas (que apresentam rachaduras), profanação de túmulos e, como consequência para as mulheres, os homens foram indenizados com um valor referente às machambas (roças) por hectares, que eram as terras das famílias. Muitos desses homens receberam o valor e sumiram para outras comunidades, casaram-se com outras pessoas, abandonando suas famílias, o que foi um processo traumatizante para essas mulheres.
Portogente – Quais tem sido as consequências que as operações da Vale em Tete têm causado nas comunidades locais e no meio ambiente, considerando fauna e flora?
Dulce Impene Combo - São inúmeras as consequências causadas pela ação da Vale, que extrai carvão mineral e exporta para a região norte do país, para o qual a Vale construiu linhas férreas para Nacala, e para o Porto da Beira, localizado no centro do país. Esse processo de transporte tem causado impactos, pois o carvão mineral é transportado de forma aberta e joga resíduos e substâncias poluentes sobre as comunidades que vivem próximas à linha férrea e ingerem essas substâncias. Além disso é certo que a Valei polui as águas, o ar, os solos e os alimentos. Todo o processo referente a questões ambientais trouxe graves consequências. Também desde a sua instalação aspectos culturais foram perdidos, a começar pela profanação de túmulos dos nossos ancestrais nos cemitérios, pois a Vale não tem o consentimento das famílias afetadas. A maior parte da comunidade local esperava que a Vale antes de operar cuidasse dos cemitérios.
Portogente - Você acredita que algumas catástrofes climáticas estão associadas a esses processos de exploração da terra e ausência de cuidados com o meio ambiente?
Dulce Impene Combo - Acredito sim, é efeito das mudanças climáticas. São extremos de períodos chuvosos muito intensos e devastadores e períodos de seca. É uma exploração insustentável dos recursos florestais e minerais e isso traz consigo enormes impactos para a natureza e consequências para as comunidades. Os impactos ambientais são provocados por mudanças climáticas e pelas ações dos megaprojetos, que afetam as vidas. Aqui na nossa região os megaprojetos são alimentados pelo Rio Revúbué. Também há uma fraca implementação do plano de gestão integrado da Bacia do Zambeze (um dos rios mais importantes do país). Acredito mesmo que seja algo relacionado pois as inundações já eram previstas pelas intensas chuvas nesta região do país onde estou é onde também tem a maior hidroelétrica da região da África Austral na verdade ela já estava cheia e precisava de abrir as comportas para continuar com os níveis normais de água. E o ciclone foi na região costeira, afetando principalmente o município da Beira (onde está localizado um dos principais portos do país e da África Austral).
Portogente - Abriram as comportas da barragem?
Dulce Impene Combo - Abriram uma das comportas da hidrelétrica Cahora Bassa na madrugada do dia 8 de março, às 3h da manhã, que causou as inundações, pois tem os dois grandes rios (Zambeze e Revúboé) e houve refluxo no meio. Infelizmente fomos os sacrificados. Quem gere a questão dos recursos hídricos é Ara Zambeze. Todo mundo está ciente disso porque não foi um dia de intensas chuvas, mas durante a semana havia chovido. Tenho imagens e vídeos.
Portogente - Produz energia elétrica para quem?
Dulce Impene Combo - Produz a energia que alimenta quase todos os países dessa região: Malawi, Moçambique, África do Sul e Zimbabwe.