A professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Maria de Fátima Pinel, conversou com o Portogente sobre as origens da tragédia do rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho (MG). Na sua avaliação a trajetória da Vale revela que a empresa não tem nenhum tipo de compromisso com o Brasil, a não ser de exploração dos recursos naturais para o lucro dos grandes investidores transnacionais. Ela conta que a Vale foi considerada a pior empresa do mundo e por onde passa deixa rastros de pobreza nas comunidades locais e devastação no meio ambiente.
Maria de Fátima tem doutorado em Auditoria Social pela Universidade de Zaragoza (Espanha) e mestrados em Diploma de Estudos Avançados, Master Oficial en Contabilidad y Finanzas (Zaragoza), em Responsabilidade Social e Auditoría; e Mestrado em Ciências Contábeis, com bacharelado em Ciências Contábeis pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Análise de Sistemas pela PUC-RJ. É pesquisadora em Auditoria Social, corrupção das transnacionais que atuam no Brasil. e Teletrabalho, tendo participado do Grupo de Trabalho da Sociedade da Informação no Brasil do Ministério da Ciência e Tecnologia (Socinfo).
Portogente – A Vale é uma empresa transnacional que tem investimentos de acionistas do mundo inteiro e extrai recursos minerais em vários países do mundo. Nesses territórios tem demonstrado um baixo interesse no cuidado ambiental, com as comunidades locais e com seus recursos humanos (trabalhadores da empresa). Na sua opinião como é possível que a empresa expanda seus negócios e receba apoio de investidores e governos, judiciário, além de baixa resistência das comunidades onde se instala?
Maria de Fátima - O estudo suíço Rede Cooperativa Global demonstra que existem 49,5 mil grandes empresas no mundo, controladas por 147 grupos. Desses, 50 são bancos, e as demais são empresas transnacionais que lidam também com produção. As empresas são globais e a sociedade civil é local. Esse é o contexto do qual partimos para falar do acidente em Brumadinho. Na sua história, a Vale inicia como uma empresa privada transnacional, de origem brasileira, mas de capital inglês e norte-americano, quando era chamada Itabira, que posteriormente foi estatizada e chamada de Vale recebeu uma série de recursos e concessões privilegiados, por prazos ilimitados. Com sede no Rio de Janeiro passou a atuar e várias partes do País (sendo Pará e Minas Gerais duas áreas muito perigosas). Então migrou de empresa privada a estatal e depois privada novamente. Cabe destacar que a Vale foi considerada a pior empresa do mundo, inclusive levando a greves em países em que trabalhadores nunca haviam paralisado, criando grupos de “atingidos pela Vale”. Passa a ser privada com total obscuridade e corrupção na sua privatização em termos de avaliação das minas e jazidas.
A ordem de privatização das empresas estatais brasileiras veio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e das suas cartas de intenções. Esses processos de privatização não têm transparência e levam à perda de soberania do país, que seria como entregar suas propriedades para morar de aluguel. Empresas que eles mandam privatizar e são compradas por empresas públicas desses países ditos desenvolvidos. Houve inúmeros processos de resistência à privatização da Vale, que foram reprimidos com muita violência policial. O poder estabelecido vendeu de modo fraudulento a Vale e até hoje não conseguimos identificar os verdadeiros donos da empresa. A maioria das ações são inglesas, pois a Inglaterra controla os minérios no mundo desde 1877, através da bolsa de metais de Londres. No processo de privatização da Vale nos questionamos porque o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) financiou a privatização? Por que participa da Vale sendo ela privada? Pegando a relação de acionistas, não há brasileiros. É uma empresa de interesse estrangeiro, onde a única participação do Brasil é do BNDES. O mundo desenvolvido depende de nós por causa dos recursos naturais para desenvolver tecnologia. Então é uma empresa privada estrangeira que é dona do Brasil, pois o que ela tem de concessões é algo que ninguém imagina. É uma mineradora que não tem compromisso com o Brasil, pois já causou um acidente ambiental que poderia ter ser evitado, segundo os próprios informes da Bolsa de Nova Iorque e da CVM, que registram o número de processos judiciais nas áreas aos arredores da mineração, devido ao descaso da empresa com as populações locais.
Portogente - Quais os riscos espalhados pelo País com as mais de 24 mil barragens instaladas? Esse modelo de desenvolvimento em que a Vale está inserida é sustentável econômica e ambientalmente?
À medida que mineram tiram o subsolo e estamos ficando sem base para apoiar a terra e para o futuro isso será muito grave. Existe uma destruição que se dá devido a um sistema econômico e ambiental insustentável. Somos o País mais rico do mundo, mas nada se reverte para a população, como acesso aos eventuais benefícios desse desenvolvimento. A riqueza do nosso solo é levada com a conivência dos órgãos de poder do Brasil: água doce (12%), aquíferos enormes, nióbio (utilizado na produção de aços especiais que vai para os EUA e Holanda), florestas que estão sendo devastadas. Para a sociedade resta o risco, que é máximo.
Agora é hora de o governo gerar empregos de qualidade e não apoiar empresas exploradoras, como as da mineração, que tiram a sustentação a terra, produzindo altos riscos nos territórios e coloniza nosso país com o apoio de segmentos de autoridades estatais que brincam com a situação. Os dados comprovam que os órgãos ambientais e trabalhistas, como Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e Ministério do Trabalho, autuam, multam, cobram, mas o judiciário perdoa, não leva a frente, e a Vale ganha no decurso de prazo. Além disso, na área mineral o Brasil tem a menor alíquota sobre royalties de minério, onde o lucro bruto é sobre o lucro líquido, e ainda assim as empresas não pagam, assim como não pagam multa, não pagam dano ambiental, não respeitam a saúde dos trabalhadores. Há pessoas que trabalham na mineração com carga de trabalho excessiva e com sérios problemas de saúde desde jovens e a Vale não considera, assim como leva a pobreza aos lugares onde se instala. A mineração no Brasil é um total desrespeito com o local, apoiada pelo judiciário. Todos os processos judiciais da Vale são horrorizantes.
Portogente - A Vale anunciou a nomeação da ex-ministra do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie, como coordenadora do seu Comitê Independente de Assessoramento Extraordinário de Apuração (Ciaea). Como você avalia a isenção de um processo de seleção liderado pela empresa internacional de consultoria Korn Ferry e confirmado pelo Conselho de Administração da Vale. Essa autofiscalização com o objetivo de auxiliar na apuração de causas e eventuais responsabilidades no contexto do rompimento da Barragem I da Mina Córrego de Feijão, em Brumadinho (MG). Qual deve ser o papel dos órgãos públicos na gestão desses empreendimentos?
Para mim isso é máfia. Sou uma pesquisadora e cientista no assunto, tenho certa idade e experiência e posso afirmar isso. A ordem vem lá de fora, somos colônia, e para isso essas pessoas estão nos cargos: para operar a colonização. Precisamos investigar essas pessoas. Precisamos chegar a quem são os donos, que é muito obscuro. Inclusive Daniel Simões pesquisa essa situação. Não existe dinheiro no mundo, o que existe são recursos naturais. O que eles querem é controlar os recursos naturais, para poder manter o poder. A ausência de brasileiros nas ações da Vale mostra que não tem nada com o Brasil, só retirada e controle desses recursos.
Portogente - A Vale anunciou que pretende se defender de forma vigorosa das ações coletivas que pedem indenização pelas mortes e danos causados pelo rompimento da barragem. No mesmo dia anunciou uma “doação” de R$ 100 mil por fatalidades e desaparecimentos. Gostaria do seu comentário a respeito desses fatos.
O Ministério Público do Trabalho exigiu uma indenização por dano moral e materiais para famílias das vítimas, trabalhadores, empregados e terceirizados seja de R$ 2 milhões por vítima, no mínimo. Ainda que a Vale queira sair na frente oferecendo esse absurdo de R$ 100 mil.
Portogente – No livro "A Doutrina do Choque", Naomi Klein traz vários exemplos de o quanto as fatalidades, acidentes e tragédias podem ser lucrativos para o capitalismo. A senhora veria alguma relação desse entendimento da autora com as tragédias recentes de responsabilidade da Vale em Minas Gerais? Seria uma crise no modelo de desenvolvimento em curso?
A Naomi Klein mostra no seu livro que até o golpe em (Salvador) Allende, no Chile, foi por controle de minério e fez parte da mesma articulação do golpe no Brasil e na Argentina. Esse golpe no Chile objetivava quebrar os países, por que não interessa uma América do Sul desenvolvida, que é o território que também tem água. A África eles afundaram, vem tirando tudo. A questão da Venezuela é por que tem petróleo e lítio, que pode chegar em quatro dias aos EUA. Vivemos um processo de desintegração, ao modelo feito pelos Chicagos boys. O Paulo Guedes quer implementar o Plano de Capitalização previdenciária do Chile no Brasil, pois ele é dono de um dos quatro bancos que tem levado ao suicídio pessoas aposentadas no Chile. Tenho verificado nas pesquisas duas questões a que estão conectadas essas empresas: o pacto de redução populacional e o fim do Estado, pois obedecem bancos e interesses externos, tendo a frente o mercado financeiro internacional que é dominado pela Inglaterra. Esses acidentes revelam o quanto somos órfãos do poder público. Esse mesmo poder público que permite que a Vale gera empregos de baixa qualidade, que lhe dá concessões ilimitadas, que permite a exploração de ouro e a concessão de linhas férreas, produzindo aqui, recebendo recursos, concessões, isenções fiscais. E, por fim, que pratique preços de transferência muito baixos (toda a empresa tem uma subsidiária em paraíso fiscal), vendendo a um preço mínimo para a Suíça, que por sua vez revende ao valor real e fica com os grandes tributos. Fisicamente o minério saiu daqui, mas quem lucrou foi a Suíça, que ficou com o tributo. Isso é tráfico.