Especial para o Portogente
Rafael Freitag é Mestre em Turismo e atua no empreendedorismo digital na área, que utiliza ferramentas de marketing digital para alavancar o turismo. Atuou durante 20 anos no poder público do turismo e, agora, foca numa área que ainda é novidade e não tem muitas ações no âmbito da internet ainda que em plena era digital. Ele acompanha as tendências e vê na área digital um grande potencial para o desenvolvimento de cursos, capacitações e formações. Suas áreas de interesse estão inseridas no que se chama “turismo de base comunitária”, que abrange o turismo rural na agricultura familiar (agroturismo), ecoturismo (ou turismo ecológico).
Rafael Freitag fazendo turismo consciente. Foto: arquivo pessoal.
O especialista conversou com Portogente sobre a atual realidade precária do mercado de turismo no Brasil e possíveis alternativas. Vamos publicar a entrevista em duas partes. A primeira nesta segunda-feira (13/08); e a segunda, na terça-feira (14).
Portogente – O setor de turismo fechou 16,5 mil empregos entre maio e junho deste ano, ao que você atribui essa situação? Essa visão predatória de negócio levaria à sazonalidade da força de trabalho, de empregos temporários e precários direitos trabalhistas?
Freitag – Na área do turismo a realidade é precária, o trabalho é precário, diferente de outros setores que você sai sexta-feira e volta segunda, trabalha-se fins de semana e feriados, quando os outros se divertem o trabalhador do turismo trabalha. A nossa folga mundial do turismo é às segundas-feiras. Mas a relação de trabalho temporário é bem complexa, como desenvolver um trabalho interessante para o trabalhador e para o empregador. Atualmente o que a gente vê são trabalhos informais e temporários, onde não se assina a carteira. O setor de eventos é o que tem o maior número de trabalhadores não registrados, pois vão lá um ou dois dias montam e desmontam o evento. Nessa relação contratante e contratado sempre quem perde é o último.
O turismo, por exemplo, em Florianópolis (SC), é uma referência e está em segundo lugar na economia local (sendo a tecnologia em primeiro). Recente levantamento dos 20 maiores devedores à prefeitura local, sete são hotéis. O segundo maior devedor é o maior hotel da cidade e foi eleito sete vezes o melhor resort de praia do Brasil. Então existe um contrassenso que a excelência para o turista não é a mesma excelência para o trabalhador do setor. Então se paga pouco, e há um rodízio muito grande. Muitas vezes o contratante afirma que não vai investir no funcionário por que se alguém oferecer R$ 100,00 a mais ele sai. Mas o que fez a pessoa sair? Ou a relação de valorização, de ter uma política de crescer dentro da empresa são raras as empresas que oferecem. Só as maiores redes internacionais de hotelaria que tem uma relação onde se consegue ver que os alunos vão crescer, entram como recepcionista, passam a mensageiro, para a reserva, passam por gerências e chegam a postos mais avançados. Na hotelaria familiar, que é a grande maioria aqui no estado de Santa Catarina, isso é muito difícil acontecer. Normalmente o mesmo gerente fica ali por que tem uma certa estabilidade, se acostumou naquela relação e vai ficar muitos anos ali. Em resumo, as condições de trabalho não são as melhores, pois se pensa no turista e não no trabalhador e não é um caso isolado brasileiro: acontece em vários destinos.
Como o turismo é um setor de serviços da economia, quando essa entra em decadência, como é o caso do Brasil, que vive um golpe de Estado há dois anos, o que acontece é um desgoverno e o turismo recebe esse reflexo. A ironia do destino é que a pasta do turismo é comandada pelas mesmas pessoas que estavam antes, e o plano atual de turismo, que analiso num artigo na revista Trade Tur, tem números absurdos, como em quatro anos dobrar o número de empregos de seis para 12 milhões, e veja só o que a pesquisa do DIAP revela. Então o turismo é um dos primeiros setores que é afetado quando se tem uma crise econômica no país, e nosso caso não é diferente, pois vivemos a crise em todos os setores da economia, reflexo de uma economia que tem uma relação ultraliberal.
Turismo combina com cultura, sustentabilidade e respeito.
Quais as estratégias mais adequadas para recuperar economicamente o setor e qual a relação desse setor com o conjunto da economia do País?
Se a gente encara o turismo não como algo supérfluo, mas como necessidade humana, a relação começa por aí. Como se pensa o turismo, qual é o conceito? É uma relação supérflua de passear no fim de semana, feriado ou nas férias ou é um valor intrínseco ao ser humano essa busca do desconhecido. Normalmente nas nossas férias vamos a lugares que não são parecidos conosco. Então muitos uruguaios vêm ao Brasil porque no seu país não existe montanha, água, o que os faz vir a Florianópolis. A academia tem o papel de promover esse debate de pensar a relação das pessoas, numa visão das ciências humanas que pensa o fenômeno turístico e não só pela administração que vão dizer que é uma atividade econômica e turística. Penso que é um fenômeno e que as pessoas têm necessidades básicas de buscar o desconhecido, de sair, quebrar a rotina. O (John) Crompton já falou isso em 1979: que as motivações das pessoas em viajar são duas: fatores que empurram para fora e fatores que puxam, lugares que tem uma relação mais harmoniosa e a pessoa vai buscar esses lugares em diferentes pontos do mundo. Então o turismo pode se tornar um incentivador do desenvolvimento econômico, mas tem que mudar a concepção de turismo que nós temos. Hoje a concepção é uma simplesmente uma atividade econômica, e nela o que vale é o lucro. E se for pensar que é um fenômeno, a gente amplia as possibilidades para “todo mundo precisa fazer turismo”. Não precisa ir longe, podemos fazer turismo na nossa aldeia, próximo de onde vive, não precisa viajar para o exterior para ser turismo. Temos uma concepção um pouco errônea que colocam pra nós que temos que ir para o nordeste, para as praias, mas podemos fazer turismo dentro da nossa cidade.
Para a Organização Mundial do Turismo (OMT) o turismo é ficar fora de casa 24 horas e ter um pernoite, mas existem visões diferentes, como a sociológica, em que se a pessoa faz algo diferente do seu habitual e utiliza o equipamento turístico, ele é sim naquele momento um turista. Mas é um debate longo e a primeira coisa é mudar a concepção de turismo para ampliar e sair dessa mesmice em que vive o turismo. Há 20 anos que o Brasil está colocado em 28. lugar em relação aos países que mais recebem turistas estrangeiros, entretanto nem metade da população brasileira viaja. Outra saída é as escolas ensinarem transversalmente o que é turismo. Também tem o viés do turismo de empreendedorismo. Pensar que as pessoas vão se formar, se qualificar e ter condições de montar algo, empreender. Vejo no empreendedorismo digital o potencial de auxiliar mais pessoas que não tem condições de pagar altos custos por um curso, mas que possam através de um curso à distância, com assessoria prática, efetiva e constante das redes sociais, que tem grupos fechados, onde as pessoas podem se ajudar e conseguir evoluir. Outra coisa importante que montamos ainda em 2000, na PUC (Pontifícia Universidade Católica), em Porto Alegre, entre alunos, a primeira cooperativa interdisciplinar de turismo, e o cooperativismo no turismo é um ramo enorme, que pode ser trabalhado mas as pessoas não querem, o Sistema S não quer. Só para ter noção, o Sebrae não aceitou a Codestur e nenhuma cooperativa porque poderia criar vínculo empregatício. É sempre esse pensamento da lógica do mercado, que é mais importante que as pessoas, e é assim que a gente vive hoje no turismo, infelizmente. Um pensamento individualista focado no lucro em vez de focado na harmonia entre ser humano, na natureza, um turismo coletivo, que é uma necessidade humana por isso.
É possível criar dinâmicas de um turismo de massa dentro de visão sustentável, ambientalmente justa e ecologicamente correta?
O turismo de massa tem um contato superficial com a comunidade local, o volume de pessoas é muito grande que ficam por uma semana por exemplo, como é o caso das Ilhas Canárias, onde a cada sábado entram e saem cinco mil pessoas de um hotel. As pessoas não têm contato com as pessoas e com a cultura local. Isso também acontece em Florianópolis e não há contato com a cultura básica fora de um estandarte de boi de mamão, ou da capoeira no nordeste. É muito ‘para inglês ver’. A gente pode ter um volume de pessoas viajando, que não seja massa, uniforme, pasteurizada, a gente consegue desenvolver algumas dinâmicas. Sou presidente da Anda Brasil, que é Confederação Brasileira dos Esportes Populares, onde temos atualmente 550 circuitos cadastrados de caminhadas na natureza, em torno de 150 mil pessoas caminham, fazemos parte de uma organização internacional chamada Instituo dos Esporte Populares (IVV), que tem 50 anos, são 56 países e mais de 17 milhões de pessoas credenciadas. São 7.500 circuitos de caminhada pelo mundo e em alguns lugares têm muitas pessoas caminhando.
É uma dinâmica onde desenvolvemos um produto turístico de baixo custo, com contato com feira da agricultura familiar, cultura local, é uma festividade. Os circuitos de caminhada é uma possibilidade que vejo. No Paraná tornou-se uma política pública onde a Emater desenvolve com os extensionistas nos municípios de três mil habitantes que não tem nada turisticamente pelo “Mapa do Turismo Brasileiro”, mas que colocam 2 mil pessoas para caminhar num fim de semana por que existe uma base organizada, a comunidade local pronta para receber, então o poder público apóia e incentiva a prática. Quando temos agente públicos, empresariado e a comunidade local unidos por uma prática coletiva, sim, nós temos volume de pessoas desenvolvendo atividade turística. Mas a base de tudo é a harmonia com a natureza e pensar no envolvimento comunitário. Com certeza são várias possibilidades, veja o caso de Pomerode, que tem vários circuitos que atendem também o cidadão local, assim como receber. Uma das alternativas são essas caminhadas na natureza, que precisa de organização e baixo investimento.