Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit)
O imperativo do ajuste fiscal encobre o real propósito de alterar o modelo de sociedade pactuado em 1988. Essa marcha foi deflagrada no início dos anos 1990. Nesse sentido, a atual estratégia de implantar o projeto neoliberal turbinado no Brasil nada tem de novidade.
A mesma estratégia foi tentada sempre com êxito incompleto nos governos Collor, Itamar e Fernando Henrique. Em 2002, ela reapareceu sob o disfarce da famigerada "Agenda Perdida", a qual, para surpresa de muitos, foi incorporada pelo Ministério da Fazenda do governo Lula. Mais adiante, em 2005, a mesma estratégia apareceu re-embalada como "Programa do Déficit Nominal Zero", fustigado como "programa rudimentar" pela então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff.
Após uma breve trégua, outra vez a estratégia de radicalizar o neoliberalismo reaparece nos programas dos candidatos derrotados em 2014, mas que, paradoxalmente, foram chancelados pela presidenta eleita, Dilma Rousseff.
Na etapa de preparação do golpe contra a democracia, a ofensiva do mercado inicia-se com a chamada "Agenda Brasil" (2015) e culmina no documento "Uma Ponte para o Futuro" (2016), reedição do passado com nova roupagem, e que se transformou no "programa de governo" da coalização espúria que assumiu o poder.
Assim, desde 1990, o modelo econômico que as elites financeiras tentam implantar aparece traduzido na política de ajuste fiscal na qual as classes dominantes acertam-se em torno de uma agenda de desconstrução de direitos sociais, sindicais, trabalhistas, humanos, ambientais e culturais.
No caso da proteção social, a mudança no modelo de sociedade pactuado em 1988 tem por propósito acabar com o embrionário Estado Social e implantar o Estado Mínimo Liberal. Para isso, os ventríloquos do mercado utilizam-se do falso consenso de que os gastos constitucionais "obrigatórios" (previdência social, assistência social, saúde, educação, seguro-desemprego, dentre outros) teriam crescido num ritmo que comprometeria as contas fiscais. Por esse raciocínio, a estabilização da dinâmica da dívida pública exigiria modificar o "contrato social da redemocratização".
Argumentam que a crise atual decorreria da trajetória "insustentável" de aumento dos gastos públicos desde 1993, por conta dos direitos sociais consagradas pela Carta de 1988. A visão de que "o Estado brasileiro não cabe no PIB" ou que "as demandas sociais da democracia não cabem no orçamento" tem sido sentenciada por diversos representantes do mercado. Vendem a falsa ideia de que a questão fiscal somente será resolvida se se extinguirem os direitos sociais de 1988. Essa construção ideológica não se sustenta, como se argumenta a seguir.
O comportamento do gasto social no Brasil a partir da Constituição Federal não é "um ponto fora da curva" na história das nações industrializadas e democráticas. O que ocorreu no Brasil a partir de 1988 guarda semelhanças com a experiência de muitos países da Europa e da América desde 1880 e, mais acentuadamente, a partir de 1945.
Lindert (2004) aponta que o "grande avanço" das transferências sociais como porcentagem do PIB ocorrido em diversos países europeus entre 1880 e 1930 reflete "o aparecimento tardio e parcial do estado de bem-estar". Esse fenômeno foi impulsionado, dentre outros fatores, pelo contínuo avanço do processo de "democratização que moldou a história pré-1880".
Mais impressionante é o aumento dos gastos sociais em relação ao PIB, entre 1945 e 1975. Pierson (1991) destaca que o aumento do gasto social "foi um dos mais marcantes fenômenos do desenvolvimento capitalista de pós-guerra". Nos países da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), a taxa média anual de crescimento dos gastos sociais cresceu de 0,9% (entre 1950-1955), para 6,5% (1960-1975). No período de maior expansão (1960-1975), a proporção do PIB destinada ao gasto social aumentou, em muitos países, de 12% para 23%.
Entretanto, o dado mais relevante é que a relação gasto social/PIB continuou a crescer na maior parte dos países desenvolvidos entre 1990 e 2000, mesmo no contexto da hegemonia neoliberal. E continuou a crescer entre 2000 e 2015, mesmo com as restrições impostas pela crise financeira global de 2008.
Documento elaborado pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) revela que, entre 2002 e 2013, "o gasto social do Governo Central aumentou mais de 11% em todos os grupos de países no período analisado" [Europa Emergente, Zona do Euro, Países Nórdicos e América Latina Emergente], com exceção da Ásia emergente (STN, 2016: 59).
Além disso, o estudo demonstra que o patamar do gasto social do Governo Central no Brasil não é elevado na comparação internacional. Ele é superior ao realizado pelos países emergentes da Ásia e encontra-se num patamar próximo dos países emergentes da América Latina. Entretanto, "em relação aos países europeus e seu estado de bem-estar social, o gasto social brasileiro ainda é relativamente baixo".
Por outro lado, o Brasil continua sendo um dos países mais desiguais do mundo. O estudo da STN ressalta que o índice Gini do Brasil "ainda se apresenta expressivamente superior ao dos grupos de países desenvolvidos e, até mesmo, das regiões emergentes do mundo". Nesse sentido, "mesmo com os significativos avanços com relação ao combate à desigualdade nos últimos anos, o Brasil ainda tem grande potencial para aprimoramento nesse indicador" (idem, p.63).
Os adeptos da visão de que "as demandas sociais da democracia não cabem no orçamento" desconsideram que o ano de 1993 coincide com a distensão do represamento secular dos direitos sociais que ocorreu a partir desse ano por força de decisão do Supremo Tribunal Federal que determinou o cumprimento imediato da Constituição de 1988.
Em mais de 500 anos de história, pela primeira vez os trabalhadores rurais, submetidos a condições de trabalho reminiscentes da escravidão, passaram a ter os mesmos direitos previdenciários que o segmento urbano. Com o início da vigência das aposentadorias rurais o número de concessões salta de um patamar anual de 120 mil para 900 mil. Após o reconhecimento desses direitos, a concessão de benefícios se manteve num patamar em torno de 300 mil anuais.
A partir de 1993 também passou a vigorar o programa Seguro-Desemprego, adotado no Brasil com mais de meio século de atraso em relação às nações desenvolvidas. Atualmente são concedidos cerca de 7 milhões de benefícios.
Com a regulamentação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) em 1994, deu-se início à implantação do programa Benefícios de Prestação Continuada (BPC), que atende atualmente quase 5 milhões de famílias com renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo e pessoas portadoras de deficiências.
Também passaram a vigorar as novas regras da Previdência Social urbana, com destaque para a introdução do piso de aposentadoria equivalente ao salário mínimo.
A série de dados iniciada em 1993 também não leva em conta fatores atípicos como, por exemplo, a notável "corrida às aposentadorias" urbanas ocorrida nos anos que precederam a Reforma da Previdência ensaiada pelo governo Collor e realizada pelo governo de FHC (Emenda Constitucional 20 de 1998).
O número de aposentadorias concedidas por tempo de contribuição na área urbana saltou de um patamar de 60 mil por ano (até 1990) para 416 mil por ano em 1997. Essa "corrida às aposentadorias" foi fruto do temor das mudanças restritivas trazidas pela tramitação da reforma da Previdência no Congresso Nacional.
No período atual, assiste-se à nova "corrida às aposentadorias", uma reação ante a proposta excludente da Previdência que tramita no Congresso. Se estudassem o passado, saberiam que reformas da Previdência sempre agravaram as dificuldades e tornaram ainda mais difícil o ajuste fiscal.
Talvez por conflito de interesses, os adeptos da visão de que os direitos sociais "não cabem no PIB" não escrevem uma linha sequer sobre os formidáveis mecanismos de transferência de renda para os ricos que poderiam ser contidos, por quem se interessasse em algum ajuste fiscal real.
Eles não mencionam, por exemplo, as renúncias fiscais para grupos econômicos e famílias de alta renda, que totalizaram 280 bilhões de reais em 2015 (cerca de 4% do PIB). Significa que, anualmente, o governo Federal abre mão 20% das suas receitas, transferidas na forma de isenção fiscal.
O poder público também deixa de arrecadar cerca de 500 bilhões de reais anualmente pela ausência de políticas severas de combate à sonegação fiscal. A falta de rigor na fiscalização fez com que o estoque da Dívida Ativa Federal atingisse mais de 1,8 trilhão de reais em 2016.
Também não há referência aos gastos com juros que, em 2015 (502 bilhões de reais), foram superiores aos gastos previdenciários (486 bilhões de reais). Observe-se que, sobretudo em função da elevada taxa de juros, o ritmo de crescimento do estoque da dívida pública triplicou em uma década (2006-2016), passando de 1 trilhão de reais para 3 trilhões de reais (em valores nominais). Em apenas um mês (de agosto a setembro de 2016), esse estoque cresceu 3,1%.
Diante desse fato, como sustentar que os gastos sociais sejam os vilões da dívida pública, se no período pós Constituição de 1988 eles cresceram em torno de 3% ao ano, e os gastos financeiros crescem 3% ao mês?
Também não se mencionam as possibilidades de crescimento da receita governamental caso se providenciasse uma reforma tributária que incidisse sobre a renda e o patrimônio. Como se sabe, a estrutura fiscal brasileira é extremamente regressiva, e promover melhor justiça fiscal pode também ser uma alternativa para enfrentar com eficácia a questão fiscal.
Em suma, o gasto social no Brasil não é um "ponto fora da curva" do cenário internacional. Ele reflete um fenômeno global associado ao avanço do processo democrático nas sociedades industrializadas. As alternativas para o ajuste fiscal passam pela revisão dos programas de transferência de renda para os ricos e pelo choque das receitas, o que depende de ações concretas voltadas para ativar o crescimento da economia.
Contudo, muito diferente do que ordena o artigo primeiro da Constituição, no Brasil todo o poder emana do mercado, que o exerce diretamente, ou por meio de representantes eleitos.