Juliano Giassi Goularti é doutorando do Instituto de Economia da Unicamp/ Brasil Debate
Ao longo da história do país, o clientelismo político foi preservado, e assim carregamos a herança de que a entidade privada precede à pública. Uma herança racial e mórbida, latifundiária e aristocrática, do sistema senhorial que trancafia um projeto político autônomo, democrático e popular
A política pública não deve ser utilizada como instrumento de relação clientelista de cunho personalista. As estruturas institucionais de Poder também não devem ser utilizadas como formas de relações clientelistas. Não é do feitio do Estado Republicano se comportar como sujeito do clientelismo, como também não é prerrogativa da elite política e elite do serviço público estabelecer relações clientelistas. O clientelismo na administração pública é senão uma forma distorcida dos interesses republicanos.
Olhando para os longos quatro séculos do Brasil colonial e um de nossa República, não estaria o clientelismo enraizado em nossa cultura? Não seria o clientelismo uma forma mais fácil e prática de solução de problemas de ordem pessoal e até mesmo coletiva? Em todo caso, esse tipo de comportamento personalista é que assegura uma estabilidade política aparente no país, de modo que seu rompimento levaria uma anarquia popular e uma rebelião patronal.
As elites brasileiras que declararam a Independência (1822) e proclamaram a República (1889), compunham-se de fazendeiros, membros da aristocracia que dispunham de título de nobreza e comerciantes que transitavam nesse círculo. Em ambas as ocasiões, mantiveram a tradição agrária exportadora, a grande propriedade e o sistema político de clientelista.
Opuseram-se aos princípios do liberalismo europeu e à política de distribuição de terras a exemplo do Homestead Act (1862) dos Estados Unidos. Isto é, na Europa o liberalismo representava uma ideologia burguesa associada do desenvolvimento do capitalismo e nos Estados Unidos o Homestead Act distribuía terras para todos que desejassem nela se instalar e produzir.
Quanto aos liberais brasileiros, se curvaram à dominação tradicional ajustando-se ao sistema de clientela, não se rebelando contra a escravidão e o latifúndio. Frequentemente apoiavam causas conservadoras que contrariavam a essência do espírito liberal burguês. Quanto a Homestead Actque distribuía terras públicas para despertar o “espírito burguês”, a Lei de Terras (1850) restringiu a terra dificultando sua distribuição, favorecendo assim sua concentração e conservação da estrutura patrimonialista.
O clientelismo marcou o período colonial e marca a República brasileira, na qual a aliança entre os homens que ocupam posições públicas e os interesses privados é o símbolo dessa união. Essa Santa Aliança está comprometida em repelir todas as manifestações que podem vir a eclodir esse sistema de dominação.
Montado segundo a lógica patrimonialista, o sistema clientelista e de patronagem é indelével de uma herança colonial que nos legou a cultura do jeitinho brasileiro que perpassa a universidade, o salão paroquial e a mercearia do seu Zé. Oriundo de um Pacto Colonial, a conduta clientelista, seus valores, seu comportamento social só pode ser compreendido hoje quando se tenha em conta o fenômeno da dominação tradicional do tipo weberiano.
Ainda que clientelismo no Brasil seja muito potente, suas raízes estão em nossa formação colonial. Nossa herança colonial não pode ser negligenciada na Formação histórica da nacionalidade brasileira (Oliveira Lima, 1911) como também na Formação econômica do Brasil (Celso Furtado, 1959) e Evolução política do Brasil (Caio Prado, 1933).
Sérgio Buarque, ao escrever Raízes do Brasil (1936), observou que “O Estado, ao contrário do que presumem alguns teóricos, não constitui uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo”. Porém, na sua ampla maioria, os homens que ocupam posições públicas não compreendem a distinção entre os domínios do privado e do público.
Raymundo Faoro, em Os donos do poder (1958), também fez essa observação de que o patronato político brasileiro está subordinado à cultura do patrimonialismo português. No bico de pena da passagem do regime imperial ao republicano, o clientelismo é reforçado. Isto é, Ordem e Progresso (Gilberto Freyre, 1957) da República não levaram a um processo de desintegração da sociedade patriarcal.
A vinda da Família Real para o Brasil (1808), Independência (1822), Abolição da Escravidão (1888) e a Constituição da República (1889) são partes importantes da etapa de nossa evolução política, econômica e cultural. Também de grande expressão nacional é a Revolução de 1930. Ainda dentro da evolução política que marcaram nossa história, podemos citar o Golpe Militar (1964), Redemocratização (1985), Constituição (1988) e o recente Golpe na democracia (2016).
Todavia, na temporalidade do conjunto dessas relações sociais, o clientelismo político foi preservado, de forma que carregamos uma herança de que a entidade privada precede à pública. Uma herança racial e mórbida. Uma herança latifundiária e aristocrática. Enfim, carregamos uma herança dos velhos vínculos do sistema senhorial que trancafia um projeto político autônomo, democrático e popular.
Sob o complexo patriarcal da Casa Grande, as relações sociais clientelistas construídas e perpetuadas ao longo da história do Brasil podem ser encaradas como um Retrato do Brasil (Paulo Prado, 1928). Sem medo, essa forma de dominação tradicional de pretensão personalista se assemelha a uma criança com doença crônica. Dessa forma, no Brasil, a concepção de Estado e democracia construída pelas elites nativa desligou-se e desliga-se do espírito Republicano, prevalecendo às relações de clientelismo político numa extensa rede de favores.
Assim, para simplificar, o que temos no Brasil é uma República Inacabada(Raymundo Faoro, 2007).