Há, hoje, um consenso crescente de que o transporte precisará responder, com celeridade, às metas globais de descarbonização. Trata-se de uma mudança estrutural na maneira como o mundo organiza sua logística e o seu comércio. O Brasil, país de dimensões continentais e matriz de transporte excessivamente dependente do modal rodoviário, precisa considerar com seriedade o papel da cabotagem nesse processo. O setor marítimo responde por aproximadamente 2,89% das emissões globais de gases de efeito estufa, segundo a Organização Marítima Internacional (IMO), e as regras para sua mitigação estão em debate, com prazos, metas e custos.
Em 2023, a IMO aprovou uma nova estratégia para o setor, com mecanismos de penalização para emissões de carbono a partir de 2027. Essas penalidades, progressivas, terão impacto direto sobre o custo operacional do transporte marítimo em todo o mundo. Entretanto, o impacto sobre a cabotagem poderá ser maior, pois no Brasil, o seu principal concorrente é o transporte rodoviário, que responde por cerca de dois terços do transporte interno de cargas no País, segundo a Confederação Nacional do Transporte, e que continuará utilizando diesel convencional, sem precificação ambiental adicional, ao menos por enquanto. O resultado é uma assimetria competitiva entre os modais, que compromete não apenas a eficiência logística nacional, mas também a coerência ambiental da transição.
Custo e risco de regressão logística
Diante disto, o custo de adaptação da cabotagem se torna alto. O setor seria o primeiro a incorporar combustíveis de menor emissão e maior preço, o que, inevitavelmente, pressionaria o valor dos fretes. Segundo o Instituto de Logística e Supply Chain (ILOS), o transporte marítimo emite, em média, cinco vezes menos CO₂ por tonelada-quilômetro do que o modal rodoviário. Ainda assim, será o primeiro a ser penalizado financeiramente.
Esse descompasso pode gerar um contrassenso logístico. Ao tornar a cabotagem menos competitiva, o Brasil corre o risco de deslocar cargas para um modal mais emissor. A consequência é ambientalmente negativa e economicamente ineficiente. A médio prazo, como é natural, todos os modais tenderão a incorporar os custos da transição energética.
Por outro lado, no curto prazo, setores como o da cabotagem, intensivo em rotas longas, embarcações dedicadas e cargas de menor valor agregado, estarão mais expostos. Esse custo será, inevitavelmente, absorvido ao longo da cadeia, com impacto final no consumidor.
Transição energética e reconstrução industrial
Apesar dos desafios, há oportunidades relevantes. O Brasil possui vantagens técnicas e naturais para liderar parte da transição. No campo dos combustíveis renováveis, como etanol e biodiesel, o país já conta com base tecnológica, cadeia produtiva e arcabouço regulatório em expansão. Um estudo da Embrapa com o CIBiogás projeta que, até 2040, combustíveis renováveis poderão substituir até 30% do diesel marítimo, desde que acompanhados de investimentos em infraestrutura, certificação e adaptação da frota.
Essa perspectiva recoloca a indústria naval e os estaleiros como vetores de desenvolvimento. Retrofit, manutenção, modernização e construção de embarcações voltam ao centro da política industrial. A adequação de portos, corredores verdes e terminais de abastecimento também exige articulação entre setores produtivos, institutos de pesquisa e o Estado.
O momento exige a formulação de um plano nacional estruturado para a transição energética marítima, com articulação interministerial e participação ativa dos setores produtivo, acadêmico e financeiro. Essa estratégia precisa considerar não apenas a substituição dos combustíveis fósseis por fontes renováveis, mas também os impactos logísticos, operacionais e industriais que decorrem dessa mudança. Sem uma abordagem coordenada, o Brasil corre o risco de perder competitividade justamente em um campo onde possui vantagens estruturais e energéticas.
Cabotagem como ativo logístico e ambiental
Quando bem estruturada, a cabotagem é capaz de reduzir emissões, integrar regiões e melhorar a eficiência logística nacional. No entanto, para que esse potencial se materialize, o país precisa garantir condições regulatórias e econômicas mínimas de competitividade.
O avanço das penalidades ambientais exige que o Brasil responda com clareza estratégica. Sem um plano de transição nacional, sem incentivos adequados e sem financiamento proporcional ao desafio tecnológico, o país corre o risco de perder competitividade e comprometer o protagonismo logístico que sua costa de 7.500 quilômetros naturalmente permite.
A descarbonização do transporte marítimo é uma realidade inevitável. Mas a forma como ela será conduzida poderá ter consequências distintas para cada país. O Brasil precisa estar preparado para isso, com dados, coordenação institucional e decisões que respeitem sua realidade produtiva. Evitar distorções, preservar a racionalidade logística e transformar exigências em oportunidade são os passos necessários para que a cabotagem, de fato, cumpra seu papel como instrumento de progresso ambiental e econômico.
Márcio Arany
CEO da Log-In Logística Integrada