Sábado, 28 Setembro 2024

Marco Antonio Negrao MartorelliPor Marco Antonio Negrão Martorelli, advogado

Os terrenos litorâneos e os terrenos marginais dos rios navegáveis integram o patrimônio imobiliário da União Federal e são identificados até a distância de 33 metros para a parte térrea medida a partir da média das marés altas do ano de 1831, considerado o estado da costa brasileira naquele ano, consoante determina o decreto-lei 9.760 de 1946.

Com origens que remontam ao Brasil colônia, a ideia de terreno de marinha teve sua gênese na necessidade, existente à época, de proteção do território nacional das invasões estrangeiras, como já ocorrera com as invasões francesas em 1555 e 1612 e holandesas em 1624 e 1630.

A fragilidade da defesa de nossas costas é narrada por Evaldo Cabral de Mello citando um folheto editado em 1624 de autoria de Jan Andries Moerbeeck, em que aponta, dentre as razões estratégicas para um ataque bem sucedido à América portuguesa pela Companhia das Índias Ocidentais, o fato das costas brasileiras espraiarem-se por quatrocentas milhas marítimas, ao longo das quais somente dois pontos mais importantes, Bahia e Pernambuco estavam melhor defendidos, afirmando que, com a ocupação de certos espaços do litoral, através de fortificações com guarnições competentes, a Companhia das Índias Ocidentais não somente se tornaria senhora do país inteiro, como poderia manter sua posse.

As providências para resguardar a integridade territorial do Brasil colônia foram tomadas após a restauração da monarquia portuguesa em 1640 e ocorreram principalmente no século seguinte em obediência às políticas do Marques de Pombal.

Com essa finalidade se deram os reparos e reforços de instalações militares existentes na colônia, como ocorreu com o forte de São João em Bertioga, efetuado dentro do contexto das obras de recuperação da Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, quando foi levantada a Bateria da praia do Góis, isso em meados do século XVIII.

Outra providência, destinada também à defesa do território da então colônia, resultou das Ordens Régias de 04 de dezembro de 1678 e 21 de outubro de 1710, quando os terrenos de marinha passaram a ser considerados bens públicos.

A Ordem Régia de 21 de outubro de 1710 é o primeiro texto legal a se referir a marinhas quando reservou à Coroa a propriedade das terras localizadas na faixa de 15 braças craveiras (33 metros), medidas da linha da preamar-médio (maré-cheia) de 1831, para a parte da terra, ao longo de toda a costa brasileira.

Antes dessa norma, o direito reinol vigente no reino de Portugal e em suas colônias somente se referia às “marinhas de sal” de propriedade do rei e de enorme importância econômica no comércio internacional lusitano. Já os terrenos de marinha constituem um instituto jurídicoproprio incidente nas costas brasileiras e que não se confunde com os situados no denominado domínio público hídrico do direito .

Os terrenos de marinha e seus acrescidos são bens públicos do País, nos termos da Ordem Régia de 04 de dezembro de 1678 e Ordem Régia de 21 de outubro de 1710, que determinavam que as sesmarias nunca deveriam compreender a marinha que sempre deve estar desimpedida para qualquer incidente do serviço, e de defensa da terra. Hoje, integram o território nacional sob domínio da União Federal , ex vi do artigo 20, VII da Constituição Federal ,

A despeito de sua antiga criação, até 1832 a definição de terrenos de marinha primava pela falta de clareza. Essa situação imprecisa somente foi definida pela instrução de 14 de novembro de 1832 que, em seu artigo 4°, definiu os terrenos de marinha no seguintes termos:

“Artigo 4°: Hão de considerar-se terrenos de marinha todos os que, banhados pelas aguas do mar ou dos rios navegáveis, vão até a distancia de 15 braças craveiras para a parte da terra, contadas estas desde os pontos a que chega o preamar médio.”

Juridicamente, os terrenos de marinha são qualificados como um instituto de direito administrativo ao qual se aplicam as normas de direito privado que não conflitarem com o jus publicum, devendo ser observado este distinguo para evitar a confusão quanto aos efeitos da enfiteuse sobre esses imóveis aqui examinada e a que incidiu sobre os imóveis de particulares.

Essa distinção está reconhecida por Aliomar Baleeiro no RE nº 56.180 – GB, em que assentou:

“2. Os padrões oferecidos se referem à enfiteuse entre particulares, regida hoje, pelo C.Civil tão somente (Súmula 291)

3. No caso, há aforamento de terrenos de marinha, que se regula por legislação específica, cujas raízes se prolongam até o velho Direito reinol. O C.Civil já encontrou o terreno do Recorrente nesse regime especial, que, depois dele foi objeto dos DL 3.438-41 e 9.760-56.”

Atualmente, quase 200 anos após sua criação, o instituto permanece vigente sem maiores alterações. Está regulamentado pelo Decreto-Lei nº 9.760/46 e legislação complementar, que ratificatam a propriedade da União sobre os terrenos de marinha, e os conceitua como aqueles situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés, bem como os que contornem as ilhas situadas em zona onde também se faça sentir a influência das marés, localizados na mesma na faixa de 33 metros medida a partir do preamar-médio de 1831, conforme definido no art. 2º do precitado decreto-lei:

“Art. 2º São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831:
a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;
b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.
Parágrafo único. Para os efeitos dêste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.
Art. 3º São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha.”

Com base na média de marés altas e baixas, foi traçada uma linha imaginária que corta a costa brasileira. A partir dessa linha, no sentido do litoral brasileiro, todo terreno que estiver a 33 metros dela será considerado da União.

Também são de domínio da União os aterros, denominados acrescidos de (terrenos de) marinha. Destaque-se que tais aterros podem ser feitos com a deposição de material sobre as marinhas ou então com a construção de estruturas sobre a lâmina d´agua sustentando uma plataforma.

A delimitação dos terrenos de marinha é uma questão complexa, uma vez que a preamar média, ao longo de quase duzentos anos, foi alterada por fatos naturais. O volume dos oceanos aumentou devido ao aquecimento de suas águas, a região costeira em muitos locais foi erodida ou alterada por efeito das marés altas, e esses fatos alteraram a configuração dos terrenos de marinha como decidiu a ilustre a magistrada titular da 1ª Vara Federal de Caraguatatuba no processo 0401548-05.1997.403.6103 (97.0401548-8):

“A União sustenta em seu laudo pericial divergente (fls. 357) que deveria ser utilizada a média das máximas marés (marés de sizígia); a pretensão, contudo, não encontra amparo no ordenamento jurídico, uma vez que o art. 2.º do Decreto-lei.º 9.760/1946 dispõe que os 33 metros contam-se da posição da linha do preamar-médio de 1831, equivalente a média das marés altas ou cheias, inclusive das de sizígia, mas não exclusivamente a média das marés de sizígia. Como apontado e demonstrado no laudo pericial oficial (fls. 377) os critérios utilizados pela União para a definição da LPM, em São Sebastião, afiguram-se um tanto ambíguos e imprecisos.”

Os terrenos de marinha, como acima afirmado, têm um regime especifico, e essa regulamentação especial, resultou em um instituto próprio de direito administrativo regulando um direito patrimonial como ensina Pinto Ferreira, verbis:
“16. As partes com direito adquirido ao contrato enfiteutico, assim sendo, devem ser mantidas devidamente no domínio útil do terreno que já lhes foi aforado ou ao qual têm direitos preferenciais e especiais para o aforamento. Elas dispõem de uma posse, que é um direito patrimonial na mais justa acepção da palavra, como reconhecem insignes civilistas desde Clovis Bevilacqua.

Esta posse só pode ser desvinculada através dos processos normais de alienação do patrimônio das partes em apreço, através da desapropriação do Poder Público, com justa e prévia indenização em dinheiro.” (in RDA 100: 33-50)

Anote-se, em relação ao direito de preferência adquirido ao contrato enfiteutico, que a outorga do aforamento, nessa hipótese, é ato vinculado, não sujeito portanto ao discricionarismo da administração pública conforme § 2º do art. 105 do decreto lei 9460 de 1946 com a redação dada pela lei nº 13 139 de 2015.

A única restrição a esse direito dominical diz respeito ao valor da indenização em caso de desapropriação, da qual deve ser deduzida a importância de vinte foros mais um laudêmio, como fixou há muito o Colendo Supremo no RE nº 42.708 PE da relatoria do Min. Victor Nunes Leal, RE nº 35.752 DF (Pleno) da relatoria do Min. Ribeiro da Costa e RE nº71723 GB, da relatoria do Min. Xavier de Albuquerque, dentre outros.

Analisando a questão da natureza do terreno aforado ou com direito ao aforamento, conforme disposto no DL 9640 de 1946 e legislação complementar, mas sob outro prisma (o da unificação de matriculas de terreno alodial e de marinha contíguos e do mesmo titular) o E. TRF da 5ª Região, em duas decisões sustentou a equivalência do domínio direto e a propriedade imobiliária, verbis:

“Na hipótese em comento, apesar de a Impetrante não possuir o domínio direto sobre os bens aforados à União, ela exerce o domínio útil, o qual deve ser equiparado à propriedade para fins de interpretação do art. 234, da lei nº 6.015-73.” (Ap. Cível 572.333-CE, Rel. Des. Federal Manoel Erhardt)

No mesmo sentido e do mesmo Colendo Tribunal, a Ap. Cível nº 559672 – CE, Relator Des. Federal Paulo Machado Cordeiro, que assentou:

“2. A respeito da inexistência de norma legal propriamente dita, importante asseverar que para solucionar a questão, é necessário interpretar o artigo 234 da LRP sob o pálio do que preceitua o art. 5º da LICC. O referido dispositivo orienta o juiz, na aplicação da lei, a atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum;

3. Assim o intérprete e aplicador tem que observar o elemento teleológico da lei em exegese. Sob esse prisma, entendo que o termo proprietário contido no art. 234 da LRP tem o sentido de detentor do domínio. É preciso entender que o temo “domínio” advém do Direito Romano e deriva do latim dominium, que significa propriedade ou direito de propriedade. Dominium deriva também de dominus (senhor, proprietário), e significa, segundo o próprio sentido etimológico, a propriedade ou o direito de propriedade que se tem sobre bens imóveis;”

Vale acrescer que a expressão latina dominus solis designa o dono da propriedade principal do terreno. Assim, tem-se a identidade dominial necessária, qual seja, domínio útil conferido ao particular por meio do contrato de aforamento e domínio direto à União, no percentual de 17% sobre o domínio pleno do imóvel, conforme §2° do artigo 103 do Decreto Lei 9.760/46.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não entendeu assim, sustentando que o direito de preferência ao aforamento reduzia-se a mera ocupação a título precário (Ap. Cível nº 13.091-0-4 de Itanhaém). À vista do acima exposto, com a devida vênia, esse entendimento não colhe pois não é, como visto, mera ocupação a título precário e sim direito de natureza dominical.

Outra questão diz respeito à unificação de terreno alodial e área confrontante de marinha, aforada ou com direito ao aforamento.

Nesse ponto, decisão do Tribunal paulista vedou a unificação desses imóveis:

“Os terrenos de marinha, de acordo com o inciso XII do artigo 20 da Constituição da República, fazem parte do patrimônio da União Federal, e, em sendo reconhecido o regime de ocupação, nada existe, além de mero reconhecimento e tolerância, que não obsta à cobrança de uma taxa, criada pela Lei 3979/19, regulamentada pelo Decreto 14.595/20, dando lugar a uma relação jurídica precária, entre o ocupante e a titular do domínio, sem que esta reconheça direito de propriedade ou qualquer outra pretensão de domínio pleno, ou mesmo de domínio útil (Decreto-Lei 9760/46, artigos 131 e 198; Apelação 25.743, da Comarca de Caraguatatuba).

Ora, em sendo diversa a identidade dos titulares do domínio de cada um dos imóveis, inclusive devido a norma constitucional expressa, jamais se constituirá uma base única e a ausência da concessão de um aforamento e a subsistência de uma situação precária por excelência, diante da natureza de tais bens, tornaria impossível o registro de que trata o item 10 do inciso I do artigo 167 da Lei 6.015/73, mesmo que a instituição se referisse apenas a imóvel sob o regime de ocupação (Apelação 13.091, da Comarca de Itanhaém).” (CSMSP – Apelação Cível: 31.190-0/1 – Localidade: Itanhaém – Data de Julgamento: 07/04/1997 – Data de publicação no DJ: 01.07.1997 – Relator: Márcio Martins Bonilha - grifamos).

Com a devida vênia, essa não é a melhor exegese da questão, primeiro por não dar correta qualificação ao direito de preferência ao aforamento. De outro lado, não é finalidade da Lei de Registros Públicos obstar a incorporação em terrenos de marinha, em regime de aforamento, ou direito a este como entendeu o Tribunal Federal da 5ª Região em decisões acima apontadas.

Essa interpretação afeta os titulares dos imóveis à beira mar, principalmente daqueles sob a forma de condomínio vertical, que se veem impossibilitados de regularizar junto ao Registro Imobiliário seus imóveis por erigidos em terreno constituído por área alodial e área de marinha tendo que se satisfazer com os contratos de gaveta.

A precariedade dessa situação resulta em inúmeros gravames a essas pessoas, indo desde a impossibilidade de onerar o imóvel em garantia de operações financeiras até dificuldades no pagamento do imposto sobre propriedade territorial urbana, cujos carnês reclamam a indicação do número de inscrição do titular no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda, indicação que neles por vezes não consta, porque o titular original faleceu antes mesmo da criação desse cadastro.

A hermenêutica, no caso, deverá obedecer à orientação da Justiça Federal e em acatamento ao art. 5º, XXXV da Carta Magna e atendido ao disposto no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.

Ensinou-nos Silvio Rodrigues que:

"A lei disciplina relações que se estendem no tempo e que florescerão em condições necessariamente desconhecidas do legislador. Daí a idéia de se procurar interpretar a lei de acordo com o fim a que ela se destina, isto é, procurar dar-lhe uma interpretação teleológica. O intérprete, na procura do sentido da norma, deve inquirir qual o efeito que ela busca, qual o problema que ela almeja resolver. Com tal preocupação em vista é que se deve proceder à exegese de um texto [08]".

Cabe lembrar também que a Lei de Registros Públicos tem a natureza de lei adjetiva em relação à enfiteuse de direito público (até por se tratar de matéria formal) e como tal fica submetida ao comando desta última.

Os terrenos de marinha foram criados para atender a uma necessidade que não mais existe. A faixa da LPM com 33 metros não tem mais utilidade para a defesa do território nacional, motivo de sua criação.

De outro lado, interpretar um instituto de direito administrativo sob o prisma de instituto similar, mas não igual, do direito privado, é condutor a um rigorismo que afeta desnecessariamente o direito de um grande número de pessoas e deixa de lado fatos inconotroversoas:
A – a elevação do nível dos mares ocasionada pelo aquecimento das aguas oceânicas;
B – a erosão costeira;
C – o afastamento das placas tectônicas alterando o traçado costeiro.

Tudo isso leva à conclusão de que os Tribunais deveriam rever o entendimento relativo a situação dos terrenos de marinha sob esse novos fatos e suas conssquencias.e tritivo sob a luz do direito na forma que é vigente.

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