* Mestranda e Especialista em Direito do Trabalho na FDUSP. Pesquisadora do GPTC/USP (Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital) e do GPTC-Gênero. Especialista em Estudos afrolatinoamericanos e caribenhos pelo Clacso. Pesquisadora do Grupo de Estudos Intelectuais Negras Brasileiras.
É com Machado de Xangô
Que a justiça reinará
Axé, Axé, Axé Salvador
A vida vai ter que mudar
(Jaime Sodré e Saul Barbosa)
No ano de 2022 voltamos a debater socialmente e também no Congresso Nacional a principal política pública de inclusão e garantidora de diversidade: a ação afirmativa social existente no Brasil.
Não, você não leu errado e nem eu cometi erro ao utilizar a expressão social. A verdade é que, apesar de muito se debater sobre cotas raciais, no Brasil as cotas são sociais segundo a Lei 12.711/2012. Apesar disso debate-se demasiadamente a questão num viés outro, que não o previsto em lei e que garantiria diversidade de tonalidades de pele no âmbito das universidades.
A ação étnico-racial que conhecemos no Brasil é a Lei nº 12.990/2014, que estabeleceu cotas étnico raciais no serviço público federal.
Considerando que a ação afirmativa étnico-racial no ensino superior, como toda política pública, necessita de justificativa, João Feres Júnior (2018) aponta três argumentos básicos de justificação que podem ocorrer combinados ou não empregados em várias situações e em vários países que passaram por essa experiência do debate público sobre o tema: justiça social, reparação e diversidade.
A teoria da justiça social se baseia no liberalismo igualitário, que defende a redistribuição de oportunidades. O bem comum é o alvo da garantia para uma minoria do acesso a ações afirmativas pois desigualdades injustificáveis de tratamento dos indivíduos, tal qual é o capacitismo, o racismo, o machismo e a LGBTIQA+fobia dentro do sistema liberal precisam ser combatidas.
Por não haver justificativa para que negros e brancos, por exemplo, tenham acessos distintos à educação, sendo esta direito fundamental protegido por toda convenção internacional sobre Direitos Humanos, é primordial termos iguais direitos a bens básicos à vida. Devem as pessoas ter o acesso igualitário, pois devemos ter chances iguais.
Esse argumento é bastante usual e popular pois a teoria propõe que essa abstração – o acesso de toda pessoa aos serviços essenciais - funcione como um devir que impulsiona e justifica as ações afirmativas.
Para tanto os membros de minorias que queiram se beneficiar devem comprovar que são vítimas de discriminação sistêmica injusta e injustificável, comprovando preencherem os requisitos para reclamar políticas públicas estatais.
Esse argumento se funda nas desigualdades observáveis no presente - independente do acúmulo de injustiças e ações estatais contra o grupo minoritário historicamente perpetradas – bastando sua constatação para justificar ações afirmativas com o fito de corrigir desigualdades, ainda conforme Feres (2012).
Os argumentos contrários são oriundos dos que defendem a redução drástica do aparelho do Estado e definem como natural as desigualdades existentes, os neoliberais.
Tem-se, ainda, o argumento de justificação de ações afirmativas da reparação histórica, que defende que o sistema de valores de uma sociedade são produto histórico da constituição cultural desta. Na linha desse argumento se compreende as condições atuais como resultado do processo histórico, do somatório de desventuras a que um grupo foi submetido, bem ao contrário do que defende a teoria liberal que atribui ao indivíduo a responsabilidade pelos resultados que obtém.
É com esteio nessa linha de argumentação que o presidente Lyndon B. Johnson, em discurso feito na formatura da turma de 1965 da Universidade de Howard, trazido por Feres (2012, p. 31), diz
A liberdade, per se, não é suficiente. Não se apagam, de repente, cicatrizes de séculos proferindo simplesmente: ‘agora vocês são livres para ir aonde quiserem e escolher os líderes que lhes aprouverem’(...) Não se pode pegar um homem que ficou acorrentado por anos, libertá-lo das cadeias, conduzi-lo, logo em seguida, à linha de largada de uma corrida, dizer ‘você é livre para competir com os outros’ e assim pensar que se age com justiça.
O argumento da reparação prescinde de uma análise histórica, no caso brasileiro, que se reconheça que houve um crime se sequestro e exploração da força de trabalho e vida de pessoas negras por mais de três séculos; que depois da aprovação em Assembleia Geral e sanção da Princesa Isabel, Princesa Imperial Regente, da Lei n. 3.353, em 13 de maio de 1888, a opressão desumana se seguiu com leis que criminalizavam pessoas negras e que isso tem consequências até os dias atuais pois não foram retiradas as barragens sociais ao povo negro imposta.
As mulheres no Brasil até 2002, com o advento do novo Código Civil, ainda eram legalmente tratadas como inferiores aos homens.
Não é possível, inclusive, se pensar em um projeto de nação brasileira sem que se assuma sua história e sejam acertadas as contas com o povo negro. Afinal, se o país foi deixado quebrado pela Coroa Portuguesa e menos de um século depois tinha recursos para trazer mão de obra imigrante europeia (camponeses despreparados e sem conhecimento algum da língua portuguesa, tampouco conhecedores do ofício na indústria), foi às custas de sangue, suor e lágrimas de pessoas trabalhadoras negras escravizadas e mercantilizadas.
Uma parcela considerável da população brasileira tem direito, por herança, a esse crédito inadimplido pelas elites orgulhosas de seus pretéritos títulos e dos que seguiram enriquecendo às custas da superexploração da mão de obra negra.
Apesar do apelo desse argumento e dele ter sido empregado pela militância defensora das ações afirmativas largamente, atualmente perde força, tomando destacado lugar o argumento da justiça social.
Outra justificativa é a diversidade, que comporta dois argumentos:
1) prudencial consequencialista, segundo o qual deve ser feito por ser prudente ou justo, devendo-se empregar o critério racial, por exemplo, a fim de garantir diversidade em sentido amplo aos espaços e melhorar a qualidade do ambiente escolar e de ensino (argumento utilizado pela Suprema Corte Americana);
2) relativista cultural, de acordo com o qual havendo múltiplas culturas, todas devem gozar dos mesmos direitos pois não há como privilegiar uma em detrimento da outra.
Essa justificativa vem ganhando grande força no âmbitos das gestões mais modernas em vários países do norte global, seja porque a legislação garante benefício jurídico, seja porque quanto mais diverso for o lugar, mais visões distintas de mundo se têm o que tornam equipes mais completas em seus olhares, planejamento e organização.
Atualmente começamos a ver empresários conectados a essa tendência e que, saindo na frente no sentido de garantir diversidade no âmbito de toda a empresa, Daí medidas como as do Magazine Luíza que abriu vagas para trainee negros: longe de fazer boas ações a empresa procurou, por meio do aumento da diversidade uma visão mais representativa, realista e múltipla da sociedade, algo que, longe de panfletário, nada mais é do que também fazer com que as empresas cumpram seu papel social, sem deixar de ter como guia a necessidade de obter lucro.
Uma medida a ser refletida mais do que criticada; imitada mais do que descartada.
Referência bibliográfica
FERES JÚNIOR, João; CAMPOS. Luiz Augusto; DAFLON, Verônica; VENTURINI, Anna. 2018. Ação Afirmativa: conceito, história e debates. Rio de Janeiro: EdUERJ.
* Mestranda e Especialista em Direito do Trabalho na FDUSP. Pesquisadora do GPTC/USP (Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital) e do GPTC-Gênero. Especialista em Estudos afrolatinoamericanos e caribenhos pelo Clacso. Pesquisadora do Grupo de Estudos Intelectuais Negras Brasileiras.