Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação
Governantes de todos os quadrantes não raro costumam escolher Deus como escudo. A história está pontilhada de referências a Deus. Em seus 40 anos de reinado, o ditador general Franco, “caudillo da Espanha pela Graça de Deus” referia-se sempre à Providência Divina, conforme passagens de seus discursos, como esta de 1937: “Deus colocou em nossas mãos a vida de nossa Pátria para que a governemos”. Os estatutos da Falange Espanhola o declaram “responsável perante Deus e perante a história”. Lembrete: a Falange Espanhola, criada em 1933 por José Antônio Primo de Rivera, foi um movimento e um partido político inspirado no fascismo.
Já os monarcas, ao correr da história, justificam a autoridade e a legitimidade sob a égide do direito divino, de onde deriva seu direito de governar, não dependendo nem mesmo da vontade de seus súditos. Hassan II, no Marrocos, se declarava descendente do profeta Maomé. Dizia: “não é a Hassan II que se venera, mas ao herdeiro de uma dinastia, a uma linhagem dos descendentes do profeta Maomé”.
Hirohito, imperador do Japão de 1926 até sua morte, em 1989, era visto como uma divindade. Criou fama, não só por ter uma realidade distante da população que viveu guerras e mortes, mas por construir uma aura divina. Ele nunca aparecia com roupas normais, sempre estava vestido com vestimentas dignas de um “imperador divino e perfeito”, como um deus que os japoneses acreditavam ser descendente da deusa do sol, Amaterasu.
O marechal Idi Amin Dada, ditador de Uganda, garantia ao povo que conversava com Deus, em sonhos, uma espécie de aval concedido a seus atos. Certo dia, um esperto jornalista joga a pergunta: “o senhor conversa com frequência com Deus”? Ele: “Sempre que necessário”. Já em Gana, os eleitores cantavam assim a figura de Nkrumah: “o infalível, o nosso chefe, o nosso Messias, o imortal”.
Por estas plagas, eleva-se aos céus a figura de Jair Bolsonaro. A quem um pastor evangélico do Congo, Steve Kunda, assim se refere: “Na história da bíblia, houve políticos que foram estabelecidos por Deus. Um exemplo quando falam do imperador da Pérsia Ciro. Antes do seu nascimento, Deus fala através de Isaías: ‘Eu escolho meu sérvio Ciro’. E senhor Bolsonaro é o Ciro do Brasil. O nosso Messias não teve dúvidas: jogou o vídeo nas redes sociais. E entoou: “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos”.
Para reforçar a mística, o bispo Edir Macedo pede que Deus ‘remova’ quem se opõe a Bolsonaro, acusando políticos de tentarem "impedir o presidente de fazer um excelente governo". E alertou: Marcelo Crivella, o prefeito do RJ, enfrenta "impeachment do inferno".
O fato é que os governantes em países atrasados culturalmente (e até em mais desenvolvidos) costumam organizar seu próprio culto. Agem para que a imprensa cultive sua imagem que pode ser uma destas: herói, Salvador da Pátria, Super-Homem, Pai dos Pobres ou Enviado dos Céus. Mas Nietsche já alertava contra tal esperteza: “o super-homem destrói os ídolos, ornando-se com seus atributos. A apoteose da aventura humana é a glorificação do homem-Deus”.
Pois bem, essa mania de querer um parentesco com Deus ressurge nessa onda direitista, de viés populista, que se espraia pelo planeta, incluindo até Nações como Hungria, Polônia, Áustria, Itália, Suíça, Noruega, Dinamarca, Filipinas, Turquia e, claro, os Estados Unidos de Donald Trump.
Esses governantes tendem a assumir comportamento autoritário, criando estruturas próprias de comunicação, formando alas sociais (amigas e inimigas), fustigando a imprensa, vista como a tribuna dos perdedores. Não aceitam que a mídia tradicional exerça as funções clássicas de apurar os fatos, que seja vigilante dos poderes públicos ou que faça cobranças.
Cortam volumosos investimentos publicitários na mídia tradicional, extinguem empregos e inauguram o ciclo do “achismo” ao expandirem a quantidade de julgadores e intérpretes do cotidiano. Os efeitos brotam: perda de credibilidade na informação; perda de qualidade informativa; formação de “exércitos” para “guerra da informação e da contra-informação”; apartheid social com a polarização discursiva; e expansão do Estado-Espetáculo.
No meio do turbilhão, Jair vai atirando contra a imprensa, verberando contra políticos e, quem sabe, pensando em subir ao trono das divindades. Para tanto, conta com a identidade do Messias, afinal, seu sobrenome.