Quarta, 27 Novembro 2024

José de Souza Martins é Professor Emérito da Universidade de São Paulo

Nestes tempos de crise do pensamento crítico no Brasil, um dos aspectos de consideração urgente é o da dificuldade de muitos cientistas para ver sua própria ciência como objeto de conhecimento de outra ciência. E de compreender criticamente o caráter relativo e de certo modo provisório do conhecimento já acumulado em seu respectivo campo de saber.

É frequente, entre nós, que análises baseadas nas ciências sociais sejam confundidas com interpretações de senso comum por parte de cientistas das demais áreas do conhecimento. Não levam em conta o que é metodologicamente próprio das diferentes ciências. Provavelmente, nem sabem que uma das funções das ciências sociais é a de estudar e diagnosticar as consequências socialmente problemáticas do próprio desenvolvimento científico.

Uma inovação agrícola lucrativa e produtiva pode levar à miséria milhares de pessoas. Uma inovação médica, como uma vacina, pode aterrorizar multidões. Tivemos no Rio a Revolta da Vacina, em 1904, em reação à obrigatoriedade da vacinação contra varíola. A alta racionalidade da ciência não é imune a irracionalidades sociais sociologicamente explicáveis.

Num momento politicamente difícil como este, interpretações sociológicas e antropológicas da realidade podem ser essenciais para o desenvolvimento de uma consciência socialmente crítica da situação do País, até mesmo em relação a ameaças que pesam sobre o trabalho científico e o ensino da ciência.

Assim como há uma ciência das ideologias, no campo da sociologia do conhecimento, há também a muito pouco analisada ideologia de cada ciência e, por isso, a da ideologia na ciência. Pasteur, que não era médico, foi peitado pelos médicos de sua época em nome de valores extracientíficos que norteavam e limitavam inovações no campo médico. O “errado” estava certo.

O trabalho científico é limitado pelas ideologias não científicas dos cientistas. Em nome de religião que eventualmente professe, um cientista pode cercear-se na pesquisa, suprimindo temas e problemas de investigação que contrariem suas convicções religiosas. Ou, em nome de determinada opção político-partidária, mesmo um cientista social pode fazer danosas correções de interpretação para que não colida com suas ideias não científicas.

Essas invasões podem não afetar o rigor técnico e formal da pesquisa científica em si, porque a interferência se dá antes, na escolha dos temas e na definição dos problemas de investigação. Mas erguem as muralhas intransponíveis do proibido à descoberta científica.

Quando governantes, louvados em seu poder, se arvoram em autoridade em campos como o da ciência e estabelecem condições e limites para o que deve ser pesquisado e estudado, ou para o que deve ser ensinado, estamos em face de pressões para ideologizar a produção e a disseminação do conhecimento. Ainda que sob o pretexto de combater ideologias onde supostamente ideologias não devem interferir. Os danos do extravasamento dessa premissa autoritária são mais do que prováveis.

Não é raro que haja quem pense que a função do cientista se baseia no pressuposto da condição de ateu. Em alguns casos, nas culturas de religiosidade extremada e ultramontana, a opção pelo ateísmo favoreceu defensivamente a indagação científica. Nos cientistas de opção preferencial pela ciência deixou aberta a iluminadora porta da dúvida em relação ao propriamente extracientífico. Exatamente porque a ciência não é campo de certeza absoluta.

Ciência só é ciência cercada pela margem da incerteza, da dúvida. Todo o tempo, a ciência põe em dúvida o já sabido. Ainda que acumulativo, o conhecimento científico é provisório e relativo. Não obstante, o senso comum do cientista é peculiar, diverso do da pessoa comum.

É claro que há situações em que um campo não científico, como uma religião, pode contribuir poderosamente para destravar bloqueios ao conhecimento científico oriundos da própria religião. Em 1994, novo catedrático da Universidade de Cambridge, fui um dos convidados do Master e dos fellows de St. John’s College para participar das celebrações de São João Batista, patrono da instituição.

Na cerimônia religiosa, na capela, o pregador dissertou sobre a importância do calvinismo no desenvolvimento da ciência em Cambridge. De fato, Cambridge foi um cenário decisivo nas controvérsias e debates sobre a Reforma protestante no século XVI. O púlpito da Igreja de Santo Eduardo, Rei e Mártir, ainda é o mesmo em que se pregou o primeiro sermão protestante da Inglaterra, em 1525.

Os elementos racionais e, mesmo, seculares do calvinismo abriam perspectivas responsáveis por um novo senso comum que iluminava aspectos vetados ou obscuros da realidade da vida.

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