Quinta, 28 Novembro 2024

Katia Rubio é professora associada da Escola de Educação e Esporte da USP, psicóloga e membro da Academia Olímpica Brasileira

A virada física do calendário leva a supor que tudo mudou. Arranca-se da porta do armário aquela folha velha e desbotada por tantas consultas e substitui-se por uma nova dando a impressão de que a vida começa do zero. Enquanto alguns se enganam com essa perspectiva de tempo linear, de fim de uma coisa e começo de outra, outros, um pouco mais cautelosos e adeptos de uma perspectiva cíclica, entendem que o passado permanece vivo. Por isso guardam folhinhas e agendas passadas porque nelas há sempre um lembrete, um recado que pode, no futuro, representar a salvação num momento de apuro. As palavras comumente presentes no ritual da folhinha são o sempre e o nunca, acompanhadas de um suspiro, meio de esperança, meio de desgosto, com o pensamento “esse ano vai ser diferente”.

Nunca é tarde para lembrar que a esperança foi a única coisa que restou dentro da caixa repleta de desgraças tão humanas que Zeus, o maioral do Olimpo, deu de “presente” a Pandora, como forma de retaliar Prometeu, que havia compartilhado o fogo sagrado entre os humanos. Resta saber o quanto dura o para sempre. Ou como cantou o poeta “se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar, que tudo era pra sempre, sem saber que o pra sempre, sempre acaba”.

Assim parece ter começado o ano de 2019. Entre um suspiro de esperança e outro de desgosto resta o desejo de um ano diferente. Mudanças no governo federal e estadual. Novo congresso, novos ministérios, acompanhados de alguns velhos problemas que insistem em fazer parecer que o ano tem bem mais do que 365 dias. Ou seja, 2018 será o ano que não acabou, o referencial de pra sempre, muito embora neste ano tenhamos Jogos Pan-americanos, uma competição cara aos brasileiros e brasileiras.

Acostumados a resultados expressivos nessa competição americana atletas e amantes do esporte precisarão, desde já, conter as expectativas e a ansiedade por resultados. Diferentemente das edições que se sucederam desde o Pan de 2007, no Rio de Janeiro, há pouco o que se esperar diante do cavalo de pau dado no carro do esporte brasileiro. Durante o ano que passou anúncios de forma sutil foram aos poucos indicando que o esporte deixou de ser prioridade. O menor dos ministérios da Esplanada, que em 2017 representava 0,48% do orçamento foi ainda reduzido em 87% para o ano de 2018, embora a inflação do período tenha sido de 2,5%. Com um orçamento de R$ 1,38 bilhão, em programas de esporte foram gastos R$ 144 milhões. Outros R$ 128 milhões foram para “pagamentos administrativos” (salários, pensões, aluguéis etc). O restante de recursos gastos, mais de R$ 645 milhões, foram de dívidas de anos anteriores, ou seja, quase o quíntuplo de recursos específicos para o esporte em 2018.

Prenúncio de sua extinção ali também estava indicado que politicamente não se deveria mais gastar trunfos e energia com um tema que estava mais para as páginas policiais do que para os velhos e bons cadernos de esporte que dedicavam páginas e páginas na cobertura de treinos, competições, história de vida de atletas e análises técnicas variadas. A queda em desgraça de um direito constitucional levou consigo toda uma história de conquistas que culminou em resultados expressivos na educação, em competições e na multiplicação da prática de diferentes culturas corporais de movimento.

Diferentemente das edições que se sucederam desde o Pan de 2007, no Rio de Janeiro, há pouco o que se esperar diante do cavalo de pau dado no carro do esporte brasileiro

Um dia alguém anunciou que nunca antes na história desse país o esporte seria o mesmo. De fato, depois de experimentar a altura de um voo panorâmico será preciso se acostumar a rastejar ao rés do chão buscando tocas onde se esconder dos escombros que ainda caem de uma estrutura desfeita à marreta. Com a extinção do ministério do esporte, dos benefícios criados para favorecer uma base sólida de atletas jovens e de uma estrutura que entendia o esporte como uma prática acessível resta a disposição para reencontrar o lugar de pertencimento de um direito constitucional. Ele já esteve aos cuidados do ministério da educação, da educação e cultura, já foi secretaria especial e mesmo assim sobreviveu, não como direito, mas como necessidade. Uma necessidade tão latente que chegava a ser anunciada como vício que demandava o ópio.

Infelizes os ignorantes que pouco ou nada sabem sobre o esporte e o tratam apenas como um vício ou espetáculo.

Aos que o tratam como vício falta o conhecimento sobre uma experiência que se inicia muito cedo na existência dos seres humanos, ainda de forma lúdica, e que pode vir a ser um meio de distinção, não apenas social, mas acima de tudo humano. Porque essa prática proporciona em quem a experimenta o poder da transcendência e do limite da humanidade, seja na conquista de uma marca nunca antes atingida, seja na realização de um gesto perfeito, divino. Banalizam a existência de um fenômeno de massa porque, ainda que manipulável em algumas ocasiões ele não o será para sempre. Qualificam-no como ópio do povo por desconhecerem sua potência educativa, que, no limite, também transforma a sociedade.

Inclassificável também é a postura de quem o toma apenas como espetáculo. Embora suscite a emoção da audição de Summertime, no contexto de Porgy and Bess, ou de We are the champions, num concerto no Estádio de Wembley, nada substitui a intensidade da expressão facial do vitorioso ou o clímax de um match point. Nenhum espetáculo é mais humano do que a inclassificável emoção da derrota, essa sim demasiadamente humana. Espetáculos são produzidos e manipulados conforme convém ao produtor. O esporte obedece a regra da excelência e da superação. Por isso escapa à compreensão de burocratas. Por isso não cabe em uma sala no fundo do corredor de algum ministério que não seja dedicado apenas a ele para onde o esporte brasileiro foi enviado no início desse ano.

O que resta é acreditar na condição cíclica do tempo. Um dia tudo isso aconteceu e por determinação de uns, insistência de outros e a crença cega na importância disso para si, mas principalmente para as gerações futuras, atletas e modalidades esportivas sobreviveram à escassez de recursos e à falta de respeito por parte de políticos e dirigentes. A ação desses abnegados, assim como a esperança na caixa de Pandora, segue registrada, menos na história dita oficial e muito mais nas narrativas de atletas que guardam em suas memórias o reconhecimento pelo esforço em manter viva a chama de um fenômeno educativo e social chamado esporte.

O esporte é sim para todos e também para alguns mais habilidosos, por isso ele é democrático. E como direito ele deve permanecer na pauta política do país, reclamando por verba e políticas.

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