Charles Mady é professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP)
Desde o início dos tempos, o ser humano assume atitudes tidas como místicas, ou religiosas. Com a evolução do pensamento, essas posturas se adaptaram, conforme as necessidades dos grupos em questão. O fator humano, falho, gerou interpretações as mais variadas sobre algo que está acima de nossas compreensões. Teríamos, portanto, o direito de julgá-las como absolutamente verdadeiras, em detrimento de outras, tidas como inferiores em relação às nossas?
Essas ideias vêm à mente quando vemos campanhas com o intuito de satanizar certas linhas de pensamento. As discussões se atêm apenas a abordar pequenas divergências, sem agregar as grandes convergências. O interessante dessa situação é que os maiores críticos geralmente apresentam um profundo desconhecimento sobre o tema, ou desonestidade intelectual. Mas, o papel aceita tudo e o público leitor infelizmente não é devidamente informado sobre o assunto. Uma pergunta deveria vir à mente dos menos informados: será que uma ideia poderia sobreviver por séculos e cativar tantos povos, se não tivesse mérito em suas raízes? Ou será que as evoluções e involuções de determinados povos fazem as críticas surgirem, de acordo com as conveniências e necessidades de seus opositores? Se não existir espaço para mais de uma religião, um dia poderá não existir espaço para mais de um povo. Para não atingirmos esse ponto, deveríamos aprender que na fórmula de vida uma pitada de humildade é fundamental.
Todas as religiões, infelizmente, já foram alvo de campanhas e atitudes destrutivas, justificadas pelos erros cometidos pelos seus intérpretes. Atualmente, a islâmica é um dos alvos preferidos.
Como cristão e ocidental, deixe-me tentar transmitir uma visão sobre o islamismo, a última das religiões monoteístas. Quando surgiu, em 610 d.C, Maomé não achou que estava fundando uma nova religião, mas sim trazendo a antiga religião de Abraão aos árabes. Suas primeiras mensagens não foram apocalípticas, mas sim alegres mensagens de esperança, ficando conhecida como Islã, ou seja, o ato da submissão a Deus, com a responsabilidade de criar uma sociedade justa. Assim como os profetas hebreus, ela pregava uma ética que politicamente poderia ser chamada de socialista. O Corão exige que os muçulmanos reconheçam as aspirações religiosas de outros e não julga que a revelação cancelava as mensagens e visões dos profetas anteriores. Ao contrário, acentuava a continuidade da experiência religiosa da humanidade, sem a exclusividade colocada por judeus e cristãos. Insiste que está revelando as leis essenciais da vida, e não uma nova verdade. Para eles, Abraão foi o primeiro muçulmano, e todo aquele que se submete a Deus é islâmico. É, portanto, uma religião ecumênica e universal.
No ocidente, Maomé tem sido apresentado como totalitário, impondo o islamismo pelas armas. Mas, a realidade é outra. Ele nunca obrigou alguém a converter-se à sua religião e preconizava a igualdade moral, e espiritual de sexos.
Seguramente, esta religião gerou, em um povo semita até então obscuro, uma grande vontade de evolução, que o levou a um estado social, artístico, intelectual e científico invejável. No século IX, os árabes entraram em contato com a filosofia e ciência gregas, que deviam muito aos fenícios, gerando um florescimento cultural semelhante ao renascimento e iluminismo. Esta evolução atingiu os mesopotâmicos e persas, além de ter se difundida por toda a Península Ibérica. Foi dessa forma que os cristãos e judeus da região, e consequentemente toda a Europa, tomaram conhecimento de todo esse patrimônio cultural. Houve um vasto projeto de tradução, onde textos em árabe de Platão, Aristóteles e outros filósofos do mundo antigo eram traduzidos para o latim, tornando-se disponíveis pela primeira vez. Também traduziram estudos muçulmanos, como as obras de Averrois, e as descobertas de cientistas e médicos árabes. Na mesma época na qual os muçulmanos ajudavam o Ocidente a construir sua civilização, Tomás de Aquino integrou a nova filosofia com a tradição cristã, tendo ficado impressionado com a interpretação de Aristóteles por Averróis. Uma escola filosófica muçulmana, a “Falsafa”, é invejável até os dias de hoje. De forma democrática, gerou uma grande evolução nas outras religiões monoteístas. Mas, como qualquer sociedade, teve seus momentos de glória e de queda, motivados por um conjunto de fatores. Da mesma forma que em épocas áureas os povos islâmicos julgaram os ocidentais bárbaros, estes retribuíram com um colonialismo brutal, reduzindo uma civilização empolgante a um bloco subserviente, impedido de evoluir, e submetido em várias ocasiões à ridicularização, além de agressões à sua cultura e tradição. As conseqüências estão sendo vividas nos dias atuais.
Infelizmente, esses autores são muito pouco difundidos em nosso meio. Esse desconhecimento gera preconceitos e medos que, por sua vez, geram a agressividade e o ódio. Naquela época, o fato das três religiões conviverem em harmonia, tornou conhecidos os desconhecidos, diminuindo os preconceitos entre si. Como exemplo, Maimônides, sábio judeu de Córdoba, deve sua formação intelectual à escola de Averrois, sábio muçulmano. Tomás de Aquino teve profunda influência dessa geração. Estes sábios não viam contradições fundamentais entre as religiões, pois as diferenças menores eram tidas como frutos da incompreensão humana. Não radicalizavam suas posições em questões menores, que é a gênese dos fundamentalismos atuais. Respeitavam muito o conceito de justiça social, pois achavam que todos mereciam as revelações. Para eles Deus era Um, acessível a todos, sem distinção. A forma podia ser particular, mas o Um era da humanidade. Como dizia Maomé, todas as religiões vinham de Deus. Este conceito construtivo fez escola. Al-Kindi, nascido em 870 na bombardeada Basra, no Iraque, pensava que não devemos nos envergonhar de reconhecer a verdade e assimilá-la de qualquer fonte, mesmo que nos seja trazida por gerações passadas e povos estrangeiros.
Na mesma linha, Al-Arabi descreveu uma atitude positiva em relação a outras religiões, demonstrando agudo senso de tolerância. Dizia o filósofo muçulmano que o homem de Deus estava igualmente à vontade na sinagoga, templo, igreja ou mesquita. Dizia: “não vos ligueis exclusivamente a qualquer credo particular, para desacreditar de todo o resto. De outro modo, perdereis muita coisa boa. Não censurem as crenças dos outros, o que não fariam se fossem justos, pois a antipatia se baseia na ignorância”.
Mostra, com seus comentários, que o Deus das religiões interpretadas de formas mais dogmáticas divide a humanidade, enquanto tal visão é uma força unificadora. Como disse Deus a Moisés: “o que parece errado a ti, para ele está certo”.
Será que uma religião monoteísta, com origem em Abraão, se não fosse bem orientada, geraria indivíduos com essa qualidade intelectual? Ou será que o ser humano deturpa o significado das revelações e, em completa ausência de humildade, interpreta as informações a seu bel prazer, ou de acordo com os seus interesses menores, colocando-se no centro das atenções, querendo até ocupar o Seu lugar como ente adorado? Será que Ele nos permitiu interpretações vaidosas e arrogantes? Será que Ele nos permitiria colocarmo-nos em situações diferenciadas em relação a outros? Alguém conheceu alguma ideologia dogmática, fanática, arrogante, ser bem sucedida na história da humanidade?
São perguntas que merecem, no mínimo, profunda meditação. Devem nos levar a pensar que ter acesso às revelações significa responsabilidade, e não privilégio.
A compreensão caminha com a humildade, gerando a tolerância necessária para se atingir a sabedoria Essa sabedoria gera respeito pelo diferente, que é o caminho para a convivência pacífica, justiça social e compaixão. Se julgarmos que só os prometidos ou eleitos, que os fundamentalistas de três religiões monoteístas serão os donos do mundo e os condutores das palavras Dele, então não aprendemos nada que Ele nos transmitiu. O respeito pelo ser humano deve superar o nosso respeito por qualquer crença, corporativismo ou ideologia. Como disse lsaías, em palavras repetidas por Cristo, “ouvi, de fato, e não entendereis, e vede, em verdade, mas não percebereis”.