Artigo de Tim Shorrock, traduzido do The Nation por Solange Reis para o Observatório Político dos Estados Unidos (Opeu). Artigo originalmente publicado em 13/06/2018, em https://www.thenation.com/article/trump-meets-kim-averting-threat-nuclear-war-us-pundits-furious/
Foi uma visão eletrizante que capturou a imaginação de milhões de pessoas que vivem na cansada Península Coreana, mas deixou muitos americanos girando em paroxismos de raiva e cinismo, dependendo de suas políticas e de seu conhecimento da história turbulenta das relações dos EUA com a Coreia do Sul e com a Coreia do Norte.
Na terça-feira, o presidente Trump e Kim Jong-un se encontraram e apertaram as mãos na ilha resort de Sentosa, em Cingapura, interrompendo décadas de profunda e amarga hostilidade entre os dois países e, possivelmente, abrindo um novo capítulo para os Estados Unidos no leste da Ásia. Mais tarde, Trump ainda se gabou de ter criado um “vínculo especial” com o ditador norte-coreano.
O encontro sem precedentes foi o clímax de meses de negociações intensas que começaram em março, quando Kim, através da mediação do presidente sul-coreano, Moon Jae-in, inesperadamente convidou Trump para se encontrar e resolver as grandes diferenças. Quando o primeiro encontro começou, Trump declarou que os tempos haviam mudado – irrevogavelmente.
“Acho que teremos um ótimo relacionamento”, previu Trump quando ele e Kim fizeram uma pausa após o primeiro aperto de mão. Com considerável eufemismo, Kim respondeu “não foi fácil chegar aqui”. “Havia obstáculos, mas nós os vencemos para estar aqui.” Suas palavras podem ter soado triviais, mas ressaltaram a longa e complicada estrada que o ditador norte-coreano e o presidente dos EUA percorreram.
Menos de um ano atrás, Kim estava ocupado construindo uma poderosa contenção de mísseis nucleares e ameaçando usá-la se a soberania da Coreia do Norte corresse perigo, enquanto Trump dizia friamente ao mundo estar pronto para lançar”fogo e fúria” a fim de “destruir totalmente” a Coreia do Norte, se as ameaças continuassem. Mas em 12 de junho, tudo isso foi esquecido.
Após 45 minutos sozinhos com seus intérpretes, Trump e Kim reuniram seus assessores e outros mais próximos para uma discussão de duas horas sobre desnuclearização e demais questões críticas. Em seguida, depois de um almoço amistoso no elegante Capella Hotel, os dois homens se reuniram para assinar um documento em que os EUA e a Coreia do Norte traçaram um plano de quatro partes para fazer as pazes e estabelecer um novo relacionamento.
A “declaração conjunta” incluiu a promessa de construir “um regime de paz duradouro e robusto na península coreana” e reafirmou o compromisso da Coreia do Norte, feito com o presidente Moon na “Declaração de Panmunjom” de 27 de abril, de “trabalhar para a desnuclearização completa da Península Coreana”. Num acréscimo de última hora, a declaração também autorizou cada lado a reiniciar o projeto abandonado anos atrás para recuperar conjuntamente os restos mortais de soldados dos EUA, mortos e desaparecidos em ação durante a Guerra da Coreia, de 1950 a 1953.
Falando a repórteres no final do dia, Trump disse que o acordo foi o primeiro passo de um conjunto prolongado de negociações que começará imediatamente e será liderado pelo secretário de Estado Mike Pompeo, “à medida que desenvolvemos certa confiança com a Coreia do Norte”. Teremos muita gente lá, e vamos trabalhar com todas pessoas em muitas outras coisas”, disse ele. “Mas tem que ser a completa desnuclearização da Coreia do Norte, e isso será verificado”.
À medida que o processo se desenrolava em Cingapura, os sul-coreanos de todo o país pararam o que estavam fazendo para assistir. “Este é o ponto de partida para começar a reconciliação dos dois países que foram inimigos nos últimos 70 anos,”, disse à Yonhap News Park Jung-eun, secretário-geral da Solidariedade Popular pela Democracia Participativa, uma influente coalizão progressista. “Será um dia histórico que levará ao fim da Guerra da Coreia.”
O presidente Moon, em comunicado divulgado logo após o término da cúpula, elogiou os dois líderes por se comprometerem com a paz. “O acordo de Sentosa de 12 de junho será registrado como um evento histórico que ajudou a derrubar o último legado da Guerra Fria na Terra”, disse ele. Em nota de cautela, acrescentou que “este é apenas um começo e pode haver muitas dificuldades pela frente, mas nunca mais voltaremos ao passado ou desistiremos dessa jornada ousada”.
Grupos de cidadãos na Coreia do Sul e nos Estados Unidos ficaram satisfeitos com o resultado. “O próprio fato de os principais líderes da Coreia do Norte e dos EUA ... se reunirem no mesmo lugar e dialogarem é histórico, e sinaliza uma nova era na qual a paz na península coreana é possível”, disse, em comunicado divulgado na quarta-feira, o Sindicato dos Trabalhadores de Serviços Públicos e Transportes da Coreia, um dos maiores sindicatos da Coreia do Sul.
“A cúpula, e os intercâmbios de alto nível que a precederam, dão forte indicação de que Kim fez uma mudança fundamental na abordagem da Coreia do Norte para o mundo”, disse ao The Nation Daniel Jasper, do American Friends Service Committee (AFSC). A AFSC tem anos de experiência na Coreia do Norte e, em maio, foi feita uma exceção à proibição de viagens dos EUA, a fim de enviar uma missão humanitária para o país.
“Uma das principais conclusões de nossa delegação foi que ficou claro que houve uma decisão norte-coreana interna de engajar a comunidade internacional no começo das Olimpíadas”, acrescentou Jasper. “Tendo falado recentemente com os norte-coreanos comuns, vejo que a cooperação eficaz está inspirando otimismo e confiança em ambos os lados da Península Coreana.”
Mas, para surpresa de muitos observadores, incluindo apoiadores do engajamento EUA-Coreia do Norte, a declaração não incluiu um cronograma claro para o desarmamento, nem deu detalhes de como o governo dos EUA vai monitorar e verificar a conformidade do Norte com o compromisso de se livrar de bombas nucleares, instalações de armas e locais de produção de mísseis.
“Não podemos deixar de sentir alguma decepção e ansiedade com o fato de a declaração conjunta não conter um acordo com medidas concretas para o estabelecimento de um regime de paz e a desnuclearização da Península Coreana”, disse o sindicato de transporte coreano em seu comunicado.
Suzanne DiMaggio, especialista em negociação no New America, observou no Twitter que o documento Trump-Kim “É uma declaração básica de princípios. Espero que sirva como ponto de partida para negociações sérias e sustentáveis”. Joseph Yun, que serviu até março como representante especial do governo Trump para a Coreia do Norte, disse que o acordo era vago. “Para mim, foi muito decepcionante que nós realmente não colocássemos no papel qualquer coisa que testasse a seriedade de Kim Jong Un”, disse ele ao The Washington Post.
Leon Sigal, ex-funcionário do Departamento de Estado e redator editorial do The New York Times, que escreveu sobre a história da crise nuclear coreana de 1994, discordou que o acordo deixasse a Coreia do Norte descomprometida. “Acho isso meio ridículo, considerando que ambos os líderes assinaram, o que não aconteceu antes”, disse ele ao The Nation. Por outro lado, “não sabemos quais detalhes foram elaborados”, acrescentou. “Muito mais será necessário.” E ele se pergunta: “Haverá um passo recíproco ainda não anunciado?”
A aparente falta de especificidade foi uma mudança em relação ao compromisso feito por Pompeo no dia anterior à cúpula. Em coletiva de imprensa na sala da Casa Branca no Marriott, ele disse que o “objetivo final” do governo dos EUA era a “completa, verificável e irreversível desnuclearização da Península Coreana”, ou CVID.
Pompeo também enfatizou que o governo Trump insistiria em sistemas de verificação mais fortes do que em acordos anteriores com a Coreia do Norte. “O ‘V’ (no CVID) é importante”, disse. “Vamos garantir que criemos um sistema suficientemente robusto para que possamos verificar esses resultados”.
Ele também disse que Trump estava pronto para dar garantias de segurança “únicas” à Coreia do Norte que os Estados Unidos nunca haviam oferecido antes. Exatamente o que ele quis dizer com isso foi deixado claro por Trump em sua conferência de imprensa, que ele organizou pouco depois de Kim e sua comitiva terem partido da ilha.
Em anúncio surpreendente, que supostamente pegou seus próprios assessores de surpresa, Trump disse que cancelaria os exercícios militares conjuntos entre EUA e Coreia do Sul, que há muito são vistos pelo Norte como uma ameaça direta à sua existência e uma das justificativas para o programa nuclear.
“Vamos parar os jogos de guerra, o que nos poupará uma enorme quantidade de dinheiro, pelo menos até constatar que a futura negociação não caminha como deveria”, disse Trump. “Além disso”, acrescentou, “acho que é muito provocativo”.
Aparentemente, sua declaração surpreendeu o governo de Moon e seus militares, que rapidamente divulgaram um comunicado dizendo que “ainda é preciso descobrir o significado exato e a intenção das observações do presidente Trump”. Na quarta-feira, a Casa Azul, de Moon, disse que concordaria com a declaração sobre suspensão “enquanto houver discussões sérias” entre os EUA e a Coreia do Sul “para a desnuclearização da Península Coreana e o estabelecimento da paz”.
Em todo caso, o fim dos exercícios parecia ter força para convencer o Norte de que Trump abandonou o que Pyongyang chama de “política hostil” da América. A própria Coreia do Norte reconheceu isso na mídia estatal num artigo sobre a cimeira, ineditamente rico em detalhes.
Percebendo a intenção de Trump de suspender os exercícios militares conjuntos, “que a Coreia do Norte considera uma provocação”, o comunicado acrescentou que “se o lado norte-americano tomar medidas genuínas para construir a confiança a fim de melhorar o relacionamento entre os dois países, a Coreia do Norte também pode tomar medidas proporcionais e adicionais de boa vontade na próxima etapa ”
Mas o fim dos exercícios militares por Trump, sua recém-descoberta amizade com Kim e a percepção de que o acordo com a Coreia do Norte carece de especificidades enfureceu os políticos e especialistas norte-americanos.
Mesmo quando as primeiras imagens foram transmitidas para o mundo, de Trump e Kim apertando as mãos contra o pano de fundo incomum das bandeiras dos EUA e da Coreia do Norte, as mídias sociais e tradicionais abundavam em críticas a Trump. Líderes democratas na Câmara e no Senado lideraram o ataque.
“Na pressa para chegar a um acordo, o presidente Trump elevou a Coreia do Norte ao nível dos Estados Unidos, preservando o status quo do regime”, afirmou a líder da minoria da Câmara, Nancy Pelosi. O líder da minoria no Senado, Charles Schumer, que na semana passada avisou que os democratas poderiam se opor a qualquer acordo que não incluísse o agora famoso compromisso da CVID, disse no Senado que Trump “legitimou um ditador brutal”.
Colunistas conservadores tiveram um dia de trabalho duro. “O espetáculo do ditador assassino, Kim Jong-un em pé de igualdade com o presidente dos Estados Unidos – a bandeira de cada país representada, uma troca diplomática supostamente “normal” entre duas potências nucleares – foi suficiente para revirar os estômagos dos “amantes da democracia”, escreveu Jennifer Rubin no The Washington Post. Análises semelhantes foram postadas durante todo o dia no Twitter.
No entanto, até Victor Cha, veterano linha-dura e ex-funcionário do governo Bush, agora no Center for Strategic and International Studies, achou o acordo decente. “Apesar das muitas falhas, a cúpula de Cingapura representa o início de um processo diplomático que nos leva para longe da guerra”, escreveu Cha no The New York Times, na terça-feira. “A Coreia do Norte não testará mais mísseis ou bombas nucleares enquanto a diplomacia continuar, e as conversas lideradas por Pompeo farão progressos para deter o pior programa nuclear do mundo.”
O contraste entre as percepções asiática e americana da cúpula, e a visão a partir dos Estados Unidos ficou evidente desde o momento em que cheguei a Cingapura.
Assisti às primeiras horas do encontro Trump-Kim no International Media Center, no centro de Cingapura, onde mais de 2.500 repórteres de todo o mundo se reuniram para cobrir o encontro.
Quando a reunião começou, todos na enorme sala pareciam hipnotizados com a visão incomum do presidente americano alto, agarrando o ombro do mais novo e muito mais baixo, Kim.
O clima era eletrizante e os repórteres de Japão, Vietnã, Alemanha, Rússia, França e muitos outros países pareciam genuinamente empolgados com as perspectivas de paz na Coreia. O sentimento de camaradagem em cobrir um acontecimento histórico era palpável; frequentemente, nos meus dois dias lá, repórteres de um país podiam ser vistos entrevistando equipes de outro.
No centro de imprensa da Casa Branca, no Marriott, a atmosfera era muito mais moderada. Lá, o corpo de imprensa estabelecido pela CNN, NBC, The New York Times, The Washington Post e outras grandes agências pareciam interessados apenas em como a cúpula poderia afetar Trump e seu destino político, e tinham pouco interesse no enorme impacto do estabelecimento da paz para a Coreia do Sul.
A certa altura, na segunda-feira à tarde, enquanto a sala aguardava a chegada de Pompeo, observei um repórter sênior do NYT em conversa profunda com seus colegas da ABC News e do The Washington Post. Enquanto riam sobre o esperado encontro entre Trump e Kim, o jornalista do NYT brincou dizendo que estava “cobrindo a cúpula Neville Chamberlain” – uma referência ao encontro desastroso do diplomata britânico com Adolf Hitler antes da Segunda Guerra Mundial, considerado um símbolo de apaziguamento. O mundo acabou. Para a Coreia do Sul, no entanto, as negociações de paz com a Coreia do Norte são uma questão de vida ou morte.
A falta de interesse da imprensa norte-americana em como as conversações afetariam os sul-coreanos foi ressaltada durante a coletiva de imprensa com Trump. Cerca de metade das perguntas da equipe da Casa Branca se concentrou na ideia de um presidente dos EUA se encontrar com um ditador – como se isso nunca tivesse ocorrido antes – ou como as negociações da Coreia do Norte poderiam afetar outros aspectos das relações internacionais dos EUA.
Mais ou menos na metade do evento de uma hora, um repórter coreano começou a gritar “Coreia do Sul! Coreia do Sul!”, a fim de trazer a discussão de volta para o impacto em seu país. Trump acabou reconheceu uma mulher da Arirang News, que retomou a questão perguntando se Trump falaria em breve com o Presidente Moon (sim) e se ele estava otimista sobre as perspectivas de um tratado de paz (sim novamente).
Assistindo ao espetáculo de Seul, na CNN, Seth Mountain, um professor e músico americano, me disse que ele e seus amigos coreanos acharam o comportamento da imprensa um insulto. “Quase toda pergunta pressupõe o direito dos EUA de dominar a Coreia e decidir seu destino”, disse em mensagem no Facebook. O crítico de mídia, Adam Johnson, que já contribuiu para o The Nation, teve reação semelhante depois de ver Rachel Maddow, da MSNBC, cair de pau no cancelamento por Trump dos exercícios militares entre os EUA e a Coreia do Sul.
“Eliminação completa e categórica de sul-coreanos e sul-coreanos à esquerda”, twittou. “A banalidade mais fácil e mais barata da segurança nacional. Miopia totalmente partidária”. Isso resume a cobertura dos EUA sobre o que pode vir a ser a conquista diplomática mais importante dos anos Trump.
Apesar de algumas preocupações sobre a falta de especificidade do acordo, Christine Ahn, fundadora e coordenadora internacional da Women Cross DMZ, estava otimista em relação aos princípios estabelecidos no documento EUA-Coreia do Norte.
“A bússola foi definida, agora é hora de garantir que esses princípios sejam seguidos por uma ação concreta, e é aí que é crucial para sociedade civil, especialmente os grupos de mulheres, intervir”, disse ela.
Mas quando o avião de Trump estava pousando de volta em Washington, na manhã de quarta-feira, o presidente já declarava vitória. “Não há mais ameaça nuclear da Coreia do Norte”, tuitou do Air Force One. “Reunir-se com Kim Jong-un foi uma experiência interessante e muito positiva. A Coreia do Norte tem um grande potencial para o futuro!”. Para este presidente, aparentemente não há como olhar para trás.