publicado originalmente em O Globo
Ser craque é, acima de tudo, superar dificuldades. Neymar e Messi são chamados assim porque conseguem se livrar da marcação cerrada e chegar ao gol. Tanto que, fora de campo, driblar é sinônimo de dar a volta por cima dos obstáculos. Foi isso que Renato Lage, em parceria com sua mulher, Márcia, fez no Salgueiro este ano. Por determinação da escola, o casal se viu obrigado a fazer um desfile sobre a busca da fama, com dinheiro da revista “Caras”. Houve resistência dentro e fora da agremiação, por achar o tema fútil e sem importância cultural para ser cantado na Sapucaí.
Salgueirenses ficaram com medo de uma exaltação à vaidade sem conteúdo algum. Mas, dentro dos limites que o contrato com o patrocinador permitia, Renato criou imagens ilustrando bem o que a indústria das celebridades tem de negativo. O desenvolvimento do enredo valeu ao artista o Estandarte de Ouro.
A crítica começou no abre-alas. Esculturas de seguranças com jeito de mafiosos estavam em volta de uma câmera fotográfica. Eles tinham cara de poucos amigos. Aquele ar de quem pode partir para a violência a qualquer momento caso alguém ouse furar o bloqueio e se aproxime da celebridade que protegem. Nesse contexto, a máquina era comparável a um canhão. A grande angular estava posicionada como uma arma na guerra pelo flagrante de um famoso. Mais do que mil palavras, a alegoria foi uma ótima imagem para pensar no quanto, em meio ao glamour, o universo da fama é agressivo. É o caso de se perguntar se dá para ser feliz assim.
Sem entrar numa de fazer sermão, Renato alertou para os riscos do culto às celebridades. A fantasia de uma ala, "Fama", também título do enredo, era uma mosca azul, referência ao poema de Machado de Assis em que um homem fica deslumbrado pelo inseto e depois enlouquece. Assim como a mosca, a fama voa alto mas a queda pode ser dramática. Uma ala com homens de terno e a faixa presidencial lembrava que políticos ganham votos construindo uma boa imagem mas iludem os eleitores. Simples assim: as aparências enganam.
Mais do que arriscado, querer ficar bem na foto a qualquer preço pode ser ridículo. A ala da cirurgia plástica mostrava a pele descolada do corpo, esticada, e a cara de palhaço. Impossível não pensar nas pessoas que recorrem ao bisturi para mudar de cara toda hora e ficam com aparência grotesca. Da mesma forma, caricata foi a fantasia de Luiz XIV, com uma peruca roxa. Resumindo a ópera: quando a vaidade não tem limite, o tiro sai pela culatra.
A turma que vende a alma para ir a eventos de revistas de celebridade levou uma alfinetada tão sutil que provavelmente não vestiu a carapuça. A fantasia “Maré mansa” trazia enormes camarões, objeto de desejo de quem ama uma boca livre. Mas, não custa pensar que antigos sonhos de consumo como viajar de avião estão cada vez mais acessíveis a todos e talvez dê para pagar o jantar com o próprio bolso. O problema é que dá trabalho.
Renato foi sarcástico nos nomes das alegorias. A sexta se chamava “Pleasure Island” (Ilha do Prazer). No mundo das celebridades, falar inglês mesmo quando há um bom correspondente em português é chique. O barco para chegar à ilha paradisíaca se chamava Eugenia (assim mesmo, sem acento), palavra que, no “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” quer dizer “aperfeiçoamento da espécie via seleção genética e controle da reprodução”. Faz sentido, porque em eventos de famosos são bem-vindos, principalmente, convidados dentro do padrão de beleza dominante. O critério de escolha é físico e emocional. Entra apenas quem está sempre sorrindo, feliz da vida. Angústias comuns a qualquer pessoa não passam nem na porta. Os seguranças jamais deixariam entrar.
Depois do desfile do Salgueiro, quem entendeu o recado provavelmente não ficou com a menor vontade de comprar revista de celebridades. Discreto e avesso ao oba-oba, Renato driblou o patrocinador e fez um enredo crítico. Não foi o primeiro. Rosa Magalhães já contrariou interesses de quem financiou desfiles da Imperatriz. O artista ganha assim uma posição de titular absoluto no time dos poucos carnavalescos que podem, sem favor algum, ser chamados de craques. Show de bola.