A novela da revitalização do Cais Mauá, trecho do porto de Porto Alegre não operacional, ganha um novo ingrediente a partir de hoje. O presidente do Conselho de Autoridade Portuária (CAP), Ricardo de Almeida Maia, comunicará à Secretaria Especial de Portos da Presidência da República que a área englobada pelo projeto foi escriturada em 2010 pelo governo estadual como sendo do Estado. Maia, que recebeu cópias das escrituras e documentos em reunião do CAP na última sexta-feira, em Porto Alegre, advertiu que o procedimento é irregular, pois os terrenos pertencem à União. O Rio Grande do Sul tem delegação para fazer a gestão e operação do terminal desde 1993.
Hoje a liberação da área para o consórcio Porto Cais Mauá do Brasil, vencedor da licitação no governo Yeda Crusius para fazer a revitalização, está dependendo do desfecho da ação judicial movida pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) no Supremo Tribunal Federal (STF). Maia pretende encaminhar hoje ofício ao ministro-chefe da Secretaria, Pedro Brito, dando anuência sobre o fato e seguindo deliberação do conselho. O chefe da Casa Civil, Carlos Pestana, informou que conhece a existências das escrituras, emitidas em agosto de 2010 após autorização da Vara de Registros Públicos da Capital, mas espera que o fato não dificulte a negociação com a Antaq para liberar a área para o complexo.
A ação da agência tramita desde dezembro do ano passado. Mesmo com o questionamento da Antaq, que alega descumprimento de regras previstas na Lei de Portos para processos de revitalização, a ex-governadora formalizou em 23 de dezembro o resultado da licitação em que saiu vitorioso o consórcio, único que disputou a concorrência. O investimento é previsto em R$ 460 milhões, e o plano dos investidores (que tem grupos espanhóis e brasileiros) é que 70% do complexo, que terá shopping center, restaurantes e outros serviços, fique 70% pronto até 2014, de olho na Copa do Mundo, que terá uma das subsedes em Porto Alegre.
Maia lembrou que o conselho, responsável por aprovação e acompanhamento de medidas que atingem a estrutura, não é contra a revitalização. O dirigente citou que a lei 8.630, de 1993 (Lei dos Portos), prevê projetos como o de Porto Alegre em áreas que não são mais operacionais. O Cais Mauá deixou de fazer embarques e desembarques de cargas em 2006. “É uma área delegada pela União ao Estado. Como o governo vai ao cartório e registra em seu nome?”, questionou o dirigente. Para Maia, o fato pode criar mais dificuldades nas negociações que ocorrem para liberar a área para a obra. Até agora, a Antaq usou como argumento na ação que pede a anulação da licitação o fato de o edital não ter cumprido regras da legislação feral, entre elas que a receita do arrendamento deve ser aplicada na manutenção do porto. Pelo edital, a renda, prevista em R$ 2,5 milhões anuais, será injetada no caixa único do Estado.
O governo Tarso Genro, que herdou o impasse, busca uma saída negociada com a agência nacional. O chefe da Casa Civil, Carlos Pestana, cuida diretamente do assunto e disse que aposta na conciliação. “A preocupação do governo desde o começo é evitar que a obra seja prejudicada pela ação judicial. Temos o compromisso para que o projeto aconteça”, reforçou Pestana, citando que na transição do governo anterior para o atual a equipe de Tarso alertou para que não fosse formalizado o resultado da licitação ante a pendência no STF. Pestana espera se reunir com a agência até o final deste mês. Em fevereiro, já houve primeira rodada de conversação. A intenção do governo é manter o atual edital, mas com ajustes para atender às exigências da agência. “Queremos evitar uma nova licitação. A Antaq quer dialogar. Em 30 dias, esperamos ter tudo resolvido”.
O ex-coordenador-executivo do projeto de revitalização do Cais Mauá, Edemar Tutikian, que agora dirigirá o projeto pela prefeitura da Capital, descarta qualquer ilegalidade nas escrituras e garante que as áreas pertencem ao Estado. Segundo Tutikian, a averbação era necessária para fazer a licitação. “O cais não tem mais operação portuária. Para fazer a licitação e arrendar para as empresas era preciso ter a escritura.” Tutikian, que agora é assessor do Gabinete de Assuntos Especiais da administração José Fortunati, acredita que o governo estadual conseguirá entrar em acordo com a agência para liberar o projeto.
Presidente de conselho ficou surpreso com a averbação
O presidente do Conselho de Autoridade Portuária (CAP) do Porto da Capital, Ricardo de Almeida Maia, engenheiro e servidor de carreira do governo federal, recebeu com surpresa a informação sobre a escrituração das áreas do Cais Mauá e considera que a situação pode ficar mais difícil dentro do impasse para liberação da área para a revitalização.
Jornal do Comércio – O governo poderia ter escriturado a área do Cais Mauá?
Ricardo de Almeida Maia - No entendimento do CAP, não. É uma área delegada pela União ao Estado. Como o governo vai ao cartório e registra em seu nome?
JC - Isso poderia ter sido feito com o aval do governo federal?
Maia – Não pode porque é área da União. A legislação é a mesma para todos os portos do Brasil. A exploração portuária é uma competência constitucional da União, que pode ser delegada, o que ocorreu aqui em 1993 por um período de 20 anos. O governo, na intenção de acelerar o processo da revitalização, foi ao cartório e registrou a área.
JC – Como o cartório emitiu a escritura?
Maia – Foi à revelia da União. O Estado conseguiu uma sentença judicial permitindo isso. A mesma sentença autorizou a averbação das duas áreas. Não posso entrar no mérito, pois não sou advogado.
JC – Escriturar uma área que pertence à União é mais grave que não seguir os requisitos?
Maia - É tão grave quanto. É um procedimento incomum. Nenhum estado do Brasil adotou procedimento desta natureza. É inédito. Trabalho há 30 anos na área portuária e é a primeira vez que vejo isso acontecer.
JC – Outros estados poderão vir a fazer o mesmo?
Maia – Não tem base legal nenhuma. Isso facilmente deve ser anulado.
JC – Para fazer a revitalização e transferir ao consórcio, o governo tinha de ter escritura da área?
Maia – Não, porque é um arrendamento, que está previsto na Lei dos Portos. Só que dentro das normas da Antaq e da Lei 8.630 de 1993 (Portos), na qual está previsto que quem tem de arrendar é a autoridade portuária, precisa da anuência da administração aduaneira. Tem de seguir as normas da Antaq quanto a estabelecimento de valor, estudos de viabilidade técnica. Uma série de questões técnicas não foram cumpridas.
JC - Isso complica ainda mais a situação do futuro do projeto?
Maia - Acredito que sim. Isso deve demandar outra ação. Da Antaq, da Secretara de Patrimônio da União, ou da Secretaria de Portos ou da AGU. Só podemos dar ciência porque um conselheiro conseguiu os registros do cartório.
JC – O senhor falou que poderia se buscar uma conciliação para colocar dentro da legalidade os passos que não foram cumpridos ou a situação é mais grave?
Maia – Tem de anular o registro. A União por meio judicial ou a Antaq fazendo valer seu poder de anuência reguladora ou o próprio Estado reverter.
JC – O consórcio vencedor tem investidores internacionais. O senhor acredita que pega muito mal processos com esta trajetória e ilegalidade?
Maia – Com certeza. Isso cria insegurança jurídica aos empreendedores. Faz com que em função disso só uma empresa tenha participado. Se tivesse tudo dentro das normas, com certeza o mercado teria mais interesse, elevando até os valores ofertados.
Fonte: Jornal do Comércio - RS