José Saramago, que morreu há quatro meses em Lanzarote, nas ilhas Canárias (Espanha), leu certa vez (ele acreditava que em um livro de François Mauriac) que durante a Guerra Civil espanhola havia aparecido, sem explodir, uma bomba na Extremadura (oeste da Espanha e Portugal).
Dentro dessa bomba os técnicos em explosivos encontraram esta legenda: "Esta bomba não matará ninguém". O escritor ficou fascinado pela história; sabia de outra parecida que ocorreu na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial; mas dessa vez os artilheiros que montaram a bomba que não mataria foram encontrados pelos fascistas e condenados à morte.
Esses materiais estavam servindo a Saramago para uma nova ficção que ele intitularia "Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas", um verso de Gil Vicente. Seria um romance sobre o comércio de armas, mas só chegou a 50 páginas. Sua morte o encerrou.
Foi o que contou na segunda-feira Pilar del Río, sua viúva, presidente da Fundação Saramago, ao apresentar um livro singular que, como todos os do Nobel português, foi publicado em espanhol pela editora Alfaguara. Trata-se de um compêndio que recolhe todo o pensamento do autor de "Ensaio sobre a Cegueira" disperso em entrevistas que ele deu em todo o mundo.
Essa espécie de vade-mécum, intitulado "José Saramago em suas Palavras", foi realizado por Fernando Gómez Aguilera, diretor da Fundação César Manrique. Ele foi o curador da exposição "A Consistência dos Sonhos", que recolhe em documentos e outros materiais a vida e a obra de Saramago. Essa exposição foi inaugurada na Fundação Saramago em 2008, quando se agravou pela primeira vez a saúde do Nobel, que morreu em 18 de junho deste ano.
A compilação funciona como um dicionário. Cidadania, romance, democracia, ética, ironia... Na capa do livro essa lista é coroada (para satisfação de Pilar del Río, como ela disse) pelo conceito Mulher. É um vade-mécum "do Saramago público, que aglutina todos os Saramagos", disse Aguilera. Ele não era um ensaísta, seus romances eram "ensaios com personagens"; mas neste livro o romancista é apresentado "como o pensador conflituoso que sempre foi". Era "um ser feito de palavras; e essas palavras o mostram em estado puro". Algumas palavras, pois, extraídas de seu livro de quase 600 páginas:
Portugal: "Nós, os portugueses, não sabemos por que pensamos determinadas coisas que cremos que pensamos".
Deus: "Seria mais cômodo crer em Deus, mas escolhi o lugar da incomodidade".
Ser humano: "Creio que Deus Nosso Senhor criou o mundo e também criou as contradições e depois, como não sabia o que fazer com elas, inventou o homem".
Lanzarote: "Digamos, para não dramatizar as coisas, que Lanzarote apareceu quando eu mais precisava de um lugar assim".
Escritor: "Não uso a literatura para fazer política, porque por experiência conheço muito bem os males da demagogia e até que ponto podem prejudicar a causa que eu mesmo defendo. Sempre aplico um cuidado extremo, uma autovigilância, para que a demagogia não entre em nada do que faço".
Mulher: "Sinto que as mulheres são, regra geral, melhores que os homens. Parece que o homem tivesse renunciado a seu ponto de vista viril, sedutor, e agora não soubesse muito bem como deveria ser. A mulher, por sua vez, é e, ao mesmo tempo, sempre está disposta a ser".
Prêmio Nobel: "Quando deixei a sala de embarque (...) senti uma (...) uma serenidade estranhíssima. Tive de atravessar um corredor (...) completamente deserto. E então, o prêmio Nobel, o pobre senhor que ali estava, completamente só, com a mala na mão e a gabardine embaixo do braço, me disse: ’Pois parece que sou prêmio Nobel’. (...) Senti-me só, muito triste porque minha mulher não estivesse ali comigo".
Jornalismo: "Estabeleceu-se e se orientou uma tendência para a preguiça intelectual, e nessa tendência os meios de comunicação têm uma responsabilidade".
Política: "Sem política não se pode organizar uma sociedade. O problema é que a sociedade está nas mãos de políticos profissionais".
Ontem à noite Pilar del Río e numerosos amigos prestaram homenagem ao Nobel em Rivas Vaciamadrid (Espanha); houve uma leitura de sua obra, além de música e dança.
Fonte: El País