Após nove anos no poder, Pervez Musharraf renunciou ontem à presidência do Paquistão para evitar um processo de impeachment orquestrado no Parlamento por uma coalizão opositora.
"Não importa se eu saio ganhando ou perdendo. A nação paquistanesa certamente perderá", disse Musharraf durante um discurso de uma hora, transmitido pela TV, no qual anunciou a renúncia. "A honra e a dignidade do país serão afetadas."
A saída de Musharraf, um general da reserva de 65 anos, já era esperada. Ele vinha enfrentando, há meses, pressão para deixar o cargo. Na semana retrasada, uma coalizão liderada pelo ex-premiê Nawaz Sharif - deposto num golpe militar comandado pelo próprio Musharraf em 1999 - e por Asif Ali Zardari, viúvo da ex-premiê Benazir Bhutto, deu início a um processo de impeachment contra o ex-presidente que seria votado nos próximos dias pelo Parlamento.
No pedido, os opositores alegam que o ex-presidente mergulhou o país numa crise política e econômica sem precedentes, além de ter violado a Constituição. No ano passado, Musharraf destituiu dezenas de juízes da Suprema Corte (incluindo seu presidente, Iftikhar Chaudhry) e depois decretou estado de emergência, provocando uma onda de protestos.
Sua situação política começou a se deteriorar em novembro, quando, sob pressão, abriu mão do comando do Exército (que acumulava com a chefia de Estado), tornando-se um presidente civil.
Em fevereiro, sofreu mais um golpe com a derrota de seus partidários nas eleições legislativas. Sem maioria no Parlamento e sem apoio do Exército - que passou a não interferir nas pressões por sua renúncia -, Musharraf perdeu as únicas garantias que teria para sobreviver ao impeachment. Outra alternativa seria dissolver o Parlamento, opção arriscada que ele preferiu não adotar.
Além de ter ficado isolado internamente, Musharraf vinha perdendo apoio de seu principal aliado externo, os EUA - fruto do fracasso do líder paquistanês no combate ao terrorismo islâmico. Desde que o processo de impeachment veio à tona, a Casa Branca não o respaldou, alegando que essa era uma "questão interna" do Paquistão.
FUTURO INCERTO
Ainda não há definição sobre quem ocupará a presidência. O presidente do Senado, Mohammedmian Soomro, fica interinamente no cargo até que o Parlamento escolha um novo presidente - o que deve ocorrer entre 30 e 60 dias.
Há especulações de que Sharif e Zardari, os líderes da coalizão opositora, almejam à presidência. Os dois, que comemoraram a saída de Musharraf, reuniram-se ontem em Islamabad para discutir sobre os passos que deveriam tomar, mas não chegaram a um acordo e se reunirão novamente hoje.
Zardari disse que era um dia histórico para o Paquistão porque o povo poderia agora se ver livre da ditadura. "A democracia é a melhor vingança", disse o viúvo de Benazir Bhutto - a ex-premiê negociava uma aliança com Musharraf pouco antes de ser assassinada em 27 de dezembro, num atentado suicida atribuído a grupos ligados à Al-Qaeda.
Especialistas consultados pelo Estado concordam com Zardari no que diz respeito à vitória da democracia, mas alertam para vários empecilhos. "Apesar da renúncia de Musharraf, ainda há vários riscos que podem levar o país de volta à instabilidade", afirmou Simon Henderson, especialista em Ásia do Washington Institute. "Zardari e Sharif brigam pelo poder no Paquistão; até que resolvam essa disputa, o futuro político do país é incerto."
Segundo integrantes da coalizão, o ex-presidente teria feito um acordo para não ser processado pela Justiça comum e poder permanecer no país. Mas, Musharraf negou em seu discurso ter negociado sua saída: "Não quero nada de ninguém. Não preciso disso. Deixo meu futuro nas mãos da nação e do povo paquistanês." Chaudhry Shujaat Hussain, líder do principal partido pró-Musharraf, disse que o ex-presidente não deixará o país e vai se mudar para uma fazenda nos arredores de Islamabad.
O partido de Sharif defende que o ex-presidente seja julgado, já que esse seria o único caminho para estabelecer a democracia. Já Zardari e seus partidários acreditam que a decisão cabe ao Parlamento.
REFORMA
Para Daniel Markey, ex-conselheiro do Departamento de Estado dos EUA sobre políticas no Sudeste Asiático, a questão agora é se os líderes paquistaneses conseguirão construir instituições democráticas sólidas a longo prazo: "Ainda há muito trabalho a ser feito antes que o Paquistão de fato tome os rumos da democracia. Os partidos políticos precisam ser reformados - e democratizar o modo como selecionam seus líderes."
Mark Schneider, vice-presidente do International Crisis Group, acredita que a renúncia representa uma vitória para os governantes civis eleitos democraticamente em fevereiro. Para o especialista, "o próximo presidente deve agir mais firmemente em relação aos militantes extremistas, pois Musharraf era apoiado por líderes religiosos e creio que seu sucessor não terá esse tipo de restrição."
Em várias cidades no país, paquistaneses saíram às ruas para comemorar a renúncia do presidente. "É ótimo saber que Musharraf caiu", disse Mohammed Said, dono de uma loja em Peshawar. "Ele tentou enganar o país até mesmo em seu último discurso, exaltando seus feitos econômicos, enquanto a vida de pessoas como nós se tornou um verdadeiro inferno", disse Said, em referência aos problemas econômicos que assolam o país, como a inflação de 25% ao ano.
CRONOLOGIA
7/10/1998 - O premiê Nawaz Sharif nomeia Musharraf para a chefia do Exército
12/10/1999 - Musharraf depõe Sharif em um golpe de Estado e assume o poder
11/09/2001 - A Al-Qaeda ataca os EUA. Musharraf promete apoio aos EUA em sua luta contra o terror, enfurecendo os radicais islâmicos
30/04/2002 - Musharraf realiza referendo para obter apoio a um novo mandato de cinco anos
10/10/2002 - Eleições, consideradas fraudulentas por observadores, instalam um Parlamento pró-Musharraf
14/12/2003 - Atentado destrói ponte em Rawalpindi antes da passagem do automóvel em que o presidente viajava. Dias depois, Musharraf sobrevive a um duplo atentado com carros-bomba na mesma estrada
30/12/2004 - Musharraf recua em sua promessa de deixar a chefia do Exército, mas ganha respaldo parlamentar para ficar no poder até 2007
6/10/2007 - Parlamento reelege Musharraf em votação boicotada pelos partidos de oposição
3/11/2007 - Musharraf declara estado de emergência, suspendendo a Constituição e demitindo juízes independentes quando a Suprema Corte se preparava para decidir sobre a legalidade de sua reeleição
28/11/2007 - Após uma séria de protestos, Musharraf deixa a chefia do Exército
15/12/2007 - Musharraf suspende o estado de emergência
27/12/2007 - Ex-premiê Benazir Bhutto é morta em atentado
18/02/2008 - Eleições parlamentares colocam partidos de oposição no poder
8/08/2008 - Líderes da coalizão governista anunciam que vão tentar obter o impeachment de Musharraf
18/08/2008 - Musharraf anuncia sua renúncia
Fonte: O Estado de S.Paulo - 20 AGO 08