Três vezes por dia, 15 minutos antes de cada um dos turnos de seis horas, centenas de portuários se reúnem em galpões do Porto de Santos para atender às requisições dos navios. O representante do Órgão Gestor de Mão-de-Obra (Ogmo), intermediário das empresas operadoras, seleciona os mestres de cada tarefa, aos quais cabe escalar as equipes. O mestre informa o número de vagas, os interessados levantam os braços com as carteiras profissionais nas mãos. Muitos são os candidatos, poucos os escolhidos.
“Trabalho que antes exigia oito homens agora é feito por dois”, disse o presidente do Sindicato dos Estivadores, Rodnei Oliveira da Silva, com 17 anos de estiva, apontando uma das principais conseqüências da Lei nº 8.630, a Lei de Modernização, que mudou a estrutura e as relações de trabalho nos portos em 1993. O número de trabalhadores do setor caiu de 60 mil para 32 mil no País, nos últimos dez anos. Esteiras, guindastes e empilhadeiras substituíram, com eficiente automatização, o esforço manual no cais.
Ainda há embarque e desembarque em sacas - na exportação de açúcar, por exemplo - mas a carga não é mais carregada nas costas, rampa acima, como ocorria no século passado. A sacaria é içada pelo comando eletrônico de máquinas modernas, restando ao homem ajeitar os fardos nas armações, tipo rede, que os transportam para bordo. O pessoal da capatazia faz o trabalho de terra, os estivadores embarcam e desembarcam a carga no convés e nos porões dos navios. É ainda uma profissão dura, mas nada comparável a 50 anos atrás.
A estiva emprega 5 mil trabalhadores em Santos - 2.300 registrados e 2.200 cadastrados. Esses, os cadastrados, são convocados quando não registrados em número suficiente. Além dos estivadores, a maior força, há mais oito categorias, cada uma com seu sindicato: conferentes, operadores de guindastes e de empilhadeiras, vigias, rodoviários, consertadores, operários, trabalhadores de bloco e capatazia. São 8.394 homens e duas mulheres. “Eram três mulheres, todas conferentes, mas uma morreu num acidente de trabalho”, informa o diretor-superintendente do Ogmo, Nelson Domingos de Giulio.
Recebem por tarefa executada, ganho médio mensal de R$ 2.722,97, com direito a férias e 13º salário. São contratados pelos operadores portuários e o pagamento, feito pelo Ogmo, sai no prazo de 48 horas. A escalação, agora em locais fechados, lembra as antigas paredes, quando os trabalhadores se concentravam em pontos do cais, onde eram selecionados pelos sindicatos.
Antes aleatória, a escalação obedece agora a uma ordem numérica. Ainda de forma manual, porque o Sindicato dos Estivadores entrou na Justiça e conseguiu uma liminar contra a informatização.
“Não resistimos ao Ogmo, mas rejeitamos a escalação informatizada porque ela não garante pontos adequados de trabalho”, diz Rodnei Silva, o presidente do sindicato. Os estivadores são também contra a proposta dos operadores de intercalar um descanso obrigatório de 11 horas entre os turnos de seis horas.
“Queremos garantir o ganho, o descanso tem de ser remunerado”, informa o sindicalista, ao justificar a posição. Outras reivindicações são a aposentadoria especial e a participação nos lucros e resultados. “Queremos aposentadoria especial porque continuamos a trabalhar nas mesmas condições precárias de antes”, argumenta Rodnei Silva. “Ainda aportam navios ‘pirangueiros’, que são navios velhos e sucateados, não só no cais público de Santos, mas às vezes até nos terminais, que são os portos arrendados para empresas privadas”. Isso não ocorre nos Estados Unidos e na Europa, observa o presidente do Sindicato dos Estivadores.
A estiva não é mais opção profissional na cidade de Santos, onde um em cada três trabalhadores está ligado às atividades do porto. Os portuários perderam a força que tinham no passado, quando uma greve da categoria era capaz de parar dezenas de navios. “Ainda somos capazes de parar, mas preferimos o entendimento”, adverte Rodnei Silva, filho e neto de estivadores, que aos 8 anos de idade já acompanhava assembléias do sindicato, então liderado pelo seu pai, Vanderlei José da Silva, quatro vezes presidente. A última greve ocorreu em março de 2001, quando os estivadores cruzaram os braços contra a imposição do descanso obrigatório de 11 horas.
“O Ogmo veio para quebrar os sindicatos, mas nos entendemos bem com ele, apesar de algumas divergências”, afirma o presidente do Sindicato dos Estivadores. “Quando o porto está no pico, o trabalhador dobra o turno, por necessidade, para aumentar o seu ganho, pois não recebe nada se não há navios”.
De Giulio, o superintendente do Ogmo, confirma o bom relacionamento. “Houve resistência dos estivadores até 2002, mas de lá para cá demos meia volta, graças à ação sociais voltada para os trabalhadores e suas famílias. O índice de rejeição é pequeno, agora somos parceiros”.
Além de serem menos numerosos, os portuários estão envelhecendo. Num esforço para renovar o quadro, o Ogmo fez um Plano de Desligamento Voluntário. No ano passado, 214 trabalhadores aderiram. Mais de 2.500 foram desligados desde 2004, por abandono de serviço. Quem não se apresenta para a escalação durante 30 dias recebe uma notificação e é afastado se não se justificar no prazo de dez dias. São profissionais que simplesmente não aparecem para trabalhar.
Segundo De Giulio, havia também casos de portuários que, depois de escalados nas paredes, pagavam um companheiro para trabalhar em seu lugar. Se recebiam R$ 300 num turno de seis horas, davam R$ 100 para o substituto. A estiva e outras funções viravam bico, pois esses portuários passavam a se dedicar a outras profissões. Eram taxistas, comerciantes e até jogadores de futebol, em suas atividades normais, fazendo do trabalho no porto quase uma eventualidade.
“A qualidade de vida caiu, porque nem o governo nem a classe patronal investem no homem”, disse o presidente do Sindicato dos Estivadores, Rodnei Silva. “Nossos trabalhadores, que deveriam passar por reciclagem profissional, estudam por conta própria”.
Apesar disso, a categoria mantém um bom nível de comodidade. A maioria dos portuários chega aos postos de escalação pilotando motos ou dirigindo carros, sem depender de condução coletiva. É um conforto necessário, pois quem vai carregar e descarregar navios tem de carregar um arsenal de equipamentos, como capacetes, luvas, coletes, máscaras e cintos de segurança.
Fonte: O Estado de S.Paulo - 28 JAN 08