Já diziam os avós que, se a barba do vizinho pegar fogo, coloque a sua de molho. O linguajar pitoresco esconde ensinamento valioso: aprender com os erros dos outros. Exemplo: em cada acidente com aviões no mundo, rigorosa perícia tenta descobrir as causas (e nunca é uma só, mas a soma de várias negligências), para apontar/implementar soluções. A pergunta é: na atividade portuária estamos efetivamente seguindo esses exemplos?
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Vamos longe, ao porto de Shahid Rajaee, no sul do Irã, abalado no dia 27/4 por grande explosão que de imediato matou 40 pessoas, feriu gravemente mais de 1.200 e abriu uma grande cratera nas instalações portuárias. Um edifício teria desabado com os efeitos da explosão, sentidos também em cidades vizinhas. A atmosfera foi poluída por “produtos químicos como o amoníaco, o dióxido de enxofre e o dióxido de azoto”.
Causas? Em apuração, mas a empresa de segurança privada Ambrey informou que o porto teria recebido em março uma carga de “combustível para mísseis à base de perclorato de sódio” e “o incêndio terá sido o resultado de um manuseamento incorreto” do produto. Para a administração aduaneira iraniana, seria uma “reserva de mercadorias perigosas e de materiais químicos armazenados na zona portuária”.
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Passemos a Beirute, 4/8/2020. Explosão no porto (ouvida a mais de 200 km dali) deixou mais de 100 mortos e 4 mil feridos, além dos desaparecidos, 300 mil desabrigados. O presidente libanês Michel Aoun considerou “’inaceitável’ que 2.750 toneladas de nitrato de amônio fossem armazenadas por seis anos em um depósito sem a segurança necessária”.
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O produto em si, componentte de fertilizantes, “é seguro, desde que não aquecido”. Mas “um incêndio, tubos superaquecidos, fiação defeituosa ou relâmpagos podem ser suficientes para desencadear tal reação em cadeia”.
Resultado: no lugar do porto, ficou The Gesture.
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Voltemos ao Brasil: Santos, 8/1/1974. Navio grego ‘Ais Giorgis’, em descarga de produtos no cais dos armazéns 30/31. Perto, um vagão ferroviário aberto se incendiou, aquecendo o casco do navio e assim incendiando por indução os produtos químicos nos porões. Em meia hora, as chamas atingiram o resto da carga e o navio foi rebocado para o meio do estuário, onde ficou ardendo por três dias e noites. Nessa operação, infelizmente um morto.
Naquela noite, um vendaval arrebentou os cabos do navio e o arrastou pelo estuário, deixando-o junto ao chamado canal de navegação, com perigo para outras embarcações e instalações portuárias. “Foi a maior tragédia no cais. Uma noite de sustos, correrias, pânico em toda a Cidade”, lembrou um jornal local, onze anos depois. A retirada dos restos do navio durou quatro décadas.
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Seria possível enumerar milhares de outras situações catastróficas no Brasil e no mundo. Excetuando-se casos deliberados como ataques inimigos, quase sempre a conclusão é a negligência despontando como causa maior, somada a uma gama de acasos que, isolados, não teriam poder destrutivo.
Aquele componente de fertilizante “tem pouco poder explosivo”... Aliás, o trigo e outros grãos que comemos também não, mas (NÃO) tente acender um isqueiro num silo de grãos para ver melhor em meio à poeira no ar...
Portos como Santos recebem combustíveis, produtos químicos e até grãos agrícolas. Transportados por veículos, dutos, esteiras, armazenados na região, inclusive em silos. E contêineres, muitos, com todo tipo de carregamento. Até cargas secretas para a base espacial de Alcântara/MA passaram pelo cais santista e atravessaram o País, com autorização do Congresso (2001) para nem serem inspecionadas.
Não é preciso um curto-circuito para iniciar a tragédia. Após anos armazenadas no cais, as embalagens estão íntegras? Para certa classe de produtos (pesquise: pirofóricos), basta uma chuvinha, uma goteira no armazém. Alguma fricção nas esteiras ou indução térmica são outras possibilidades. Negligência, então...
Exemplos antigos e atuais mostram que seria bom colocarmos algo de molho...
Porto de Beirute, foto por satélite, cinco anos depois: destruição visível
Imagem: Google Maps/Earth: https://maps.app.goo.gl/TKK2vv1Juj3xzUbf8