Falta de informação à população, da clareza do objetivo do projeto e o risco de ocupação irregular são alguns dos aspectos apontados
Durante o evento Porto e Negócios, realizado em 12 de agosto último, que debateu o projeto da ponte para interligação entre margens do Porto de Santos proposta pela Artesp e Ecovias, o Governo do Estado de São Paulo anunciou que a licença ambiental da obra poderá sair em setembro ou outubro próximos, com possibilidade de início de construção prevista para 2020. No entanto, há muitos pontos a serem esclarecidos sobre o projeto.
Morador de bairro, senhor João Inocêncio aponta para local onde parte da ponte se erguirá.
A pedido desta colunista, Daniela Corrêa e Castro de Carvalho, doutora em Comunicação e Informação pela Fiocruz/RJ, especialista em comunicação no licenciamento ambiental, analisou o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da ponte. O professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Unisantos, José Marques Carriço, arquiteto na Prefeitura Municipal de Santos, também colabora para a compreensão do documento.
Cais das Letras – primeiro artigo
* Entre as duas margens, precisamos de diálogo aberto, de conexões reais
O licenciamento ambiental é conduzido pela Cetesb/SMA, que analisa, além do EIA, o Rima – Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) da ponte, estudo realizado pela Geotec, empresa contratada pela Ecovias. “O Rima é o relatório que resume as informações mais relevantes do EIA e com linguagem acessível, já que o EIA tem linguagem mais técnica”, explica Daniela Corrêa. A pesquisadora destaca alguns pontos importantes do estudo ambiental que, segundo ela, inviabilizam e invalidam socialmente o EIA.
Como ponto inicial da sua análise, Daniela destaca que o relatório, apresentado em julho último em uma audiência pública em Santos, não traz informações suficientes sobre as opções possíveis para melhoria da mobilidade urbana entre Santos e Guarujá, conforme exigência legal em projetos de grande impacto socioambiental. Apesar do EIA não ser facilmente acessível, o Rima deve ser discutido com a população em audiência pública. Ele está bem escondido, mas está “aberto” no site da Cetesb (para ler procure o processo 050/2019, clicando aqui)
Todo projeto é elaborado conforme um objetivo. No caso da ponte, indica-se que o objetivo é solucionar a limitação da capacidade das balsas no atendimento à demanda na travessia de pedestres, ciclistas e veículos automotores entre Santos e Guarujá, problema que se agravará com a ampliação de atividade do Porto de Santos. Contudo, nas estimativas do EIA/Rima há “uma falsa clareza nos números, apresentados de forma dispersa no estudo”, afirma Daniela.
Cais das Letras – segundo artigo
* Os argumentos de quem defende a ponte e de quem defende o túnel
Procurando exemplificar isso, a análise da pesquisadora aponta que o projeto estima um tráfego diário de 19 mil carros e 7 mil caminhões, oriundos da balsa e da rodovia, totalizando 26 mil por dia e 9.490.000 por ano, trafegando pela ponte em fase de licenciamento. Os dados atuais da Rodovia Cônego Domenico Rangoni (de Santos para Guarujá) são de fluxo médio diário de 15 mil veículos em 2017, com um total de 5.475.000 veículos por ano. Já pelo sistema de balsas da Dersa passam, aproximadamente, 7.400 veículos (automóveis, ônibus, caminhões leves e veículos oficiais), 9.860 bicicletas e 7.740 motocicletas, dados apresentados no EIA/Rima da ponte.
Desta forma, somando os valores de veículos na balsa – 7.400 – com os da rodovia – 15.000 – haveria um total atual de cerca de 23 mil veículos diários (8.395.000 no ano). Com isso, a promessa apontada pela ponte é de que todo o fluxo atual seria redirecionado para ela. Diante desses números, a pesquisadora questiona: “As balsas deixariam de existir? O túnel depois seria construído apenas para atender à demanda de mobilidade dos ciclistas e pedestres?”. E reforça: “É uma demanda já não atendida agora, e normalmente desfavorecida das políticas públicas.”
Prosseguindo nos números, agora por tipo de veículo, a ponte teria como justificativa atender a uma ânsia da população de solucionar os congestionamentos na balsa. No entanto, o argumento da Ecovias é a busca de uma solução para carga e logística. Deste conflito que o próprio EIA/Rima coloca, surge outro questionamento: se a ponte tem como foco resolver o fluxo da carga e logística, ou seja, 7 mil caminhões, algo em torno de 40% do total de veículos que vão usar a ponte, o estudo não indica quantos caminhões precisam se deslocar de Santos para o Guarujá atualmente nem indica qual a projeção de aumento de caminhões. Isso significa que o estudo não apresenta dados que confirmem a defesa para a construção da ponte.
A pesquisa de percepção
Com todas essas fragilidades, o EIA-Rima recorre à população de Santos para legitimar a superficialidade do seu estudo, apresentando uma pesquisa de percepção ainda mais incompleta, aponta Daniela. Ao invés de informar à população sobre o projeto para que ela pudesse opinar sobre ele, o estudo realiza uma “pesquisa de percepção” com vários pontos questionáveis, conforme a pesquisadora.
Cais das Letras – terceiro artigo
* Por uma ponte de conexões
O objetivo da pesquisa, de acordo com o EIA-Rima, era verificar “junto à população habitante de Santos que será diretamente impactada”. Para isso, a pesquisa entrevistou 71 pessoas, mas apenas 58 eram da Baixada Santista. Cabe registrar que o próprio estudo indica que deveriam ser ouvidos, no mínimo, 68 moradores da região, motivo que, conforme Daniela, já invalidaria a pesquisa, já que os moradores da região não foram minimamente ouvidos. Soma-se a isso que os moradores de bairros impactados pelo projeto, como Saboó, Porto Saboó e Alemoa, Chico de Paula, Vila Haddad e Morro Penha, que sofrerão com impacto direto com a construção da ponte (como o adensamento do trânsito e os possíveis danos ao comércio local), não foram ouvidos na pesquisa.
Também não foram ouvidos os usuários frequentes da balsa de Santos/Guarujá. Dos entrevistados, 39 usam a balsa regularmente e 32 não utilizam. Logo, a pesquisa entrevistou pessoas que não são da Baixada Santista, não são usuárias da ponte, e afirmou que elas representam a opinião da população da região. A maioria das pessoas apenas “tinha ouvido falar, porém não em seus detalhes”, sobre o projeto da ponte. Com isso, mesmo que “98% dos entrevistados considerem necessária a interligação das rodovias nos trechos em estudo”, não significa que consideram a opção apresentada pela Artesp e Ecovias como necessária. São afirmações distintas, explica a pesquisadora.
Arquiteto também aponta questionamentos ao projeto
Segundo José Marques Carriço, arquiteto na Prefeitura Municipal de Santos, um dos problemas mais graves do EIA-Rima é a ausência de um arquiteto e urbanista na equipe que o elaborou, omissão que se repete no caso do Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV). Além disso, ficou claro, segundo ele, o fato de a Geotec ter usado como base os estudos da Dersa, realizados há alguns anos sobre o projeto do túnel, sem atualizar informações importantes, como a mais recente portaria da Aeronáutica que trata da Zona de Proteção da Base Aérea de Santos, que é de 2015.
Sobre a questão da proposta de mobilidade urbana, aponta: “Procuraram moldar o estudo da ponte aos interesses do resultado final do EIA-Rima. O estudo do túnel foi aprofundado, no início da década, com análises exaustivas, mas agora parece que se forçou para tentar caracterizar a ponte como uma intervenção complementar, como se fosse criar um sistema: o túnel no meio do canal como alternativa de transporte urbano e a ponte mais para o fundo do canal, como alternativa de transporte de cargas.”
Cais das Letras – quarto artigo
* Debate municipal sobre a ligação seca entre as margens do Porto de Santos
No entanto, conforme o arquiteto, na ocasião do debate entre a Prefeitura de Santos e a Dersa, a empresa tinha a intenção de viabilizar o transporte no túnel submerso não apenas ao trânsito urbano, mas também ao de cargas. “Tanto que na Prefeitura estávamos estudando acessos para o lado da margem de Santos que segregassem o trânsito de cargas do urbano.”
Há preocupação, segundo ele, com a provável indução à ocupação irregular na Área Continental de Santos, problema apontado pela comissão que analisa o EIV (composta por servidores municipais da Prefeitura), ao emitir o termo de referências no qual o empreendedor se baseia para fazer esse estudo. “A equipe que elaborou o EIA ignorou esse aspecto. Mas a comissão que faz a análise do EIV provavelmente vai apontar essa fragilidade e exigir do empreendedor alguma medida.”
Ainda segundo o arquiteto, na manifestação técnica da Secretaria Municipal de Meio Ambiente para o licenciamento ambiental, reproduzida no EIA, há menção à pressão por ocupações irregulares, cobrando estudo específico. “O documento pede atenção específica à possibilidade de ocupação irregular em áreas de preservação, já que a mão de obra importada tende a ocupar os locais, evitando desmatamento da Mata Atlântica. As ações de controle de ocupação do município ficarão muito sobrecarregadas e é justo que o empreendedor, que vai auferir lucro com a ponte por meio da cobrança de pedágio, arque com os custos de um programa de fiscalização na parte da área continental mais suscetível a essas pressões”, aponta Carriço.
Acerca desta questão, o arquiteto questiona a posição de quem enxerga a área continental como saída para o déficit habitacional de Santos. Segundo ele, "essa tese era bastante ouvida na década de 1980, quando se achava natural que a população de baixa renda morasse longe dos empregos e serviços, e não se valorizava a importância da área como patrimônio ambiental".
O arquiteto lembra, também, que a população da Área Continental de Santos, que poderia ser diretamente beneficiada com o novo acesso, vai ter que pagar pedágio para chegar na área insular, "o que, em muitos casos, pode reduzir ou eliminar a vantagem da nova ligação, em termos de mobilidade urbana".
OAB escutada, população nem tanto
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seção Santos, realizou uma reunião com a Ecovias e a Geotec para apresentação do EIA-Rima recentemente. Sobre possíveis questionamentos ao EIA feitos por especialistas, a presidente da Comissão de Meio Ambiente da OAB, Luciana Schlindwein Gonzalez, argumenta: “O que a Ecovias precisa para licença prévia não é aprofundamento. São três etapas: licença prévia, de instalação e de execução. Para a licença prévia, o que apresentaram é suficiente. Na fase que está o projeto está satisfatório.”
A Ecovias vem justificando o projeto como solução para mobilidade de carga e logística. Sobre a divulgação do projeto à população, em entrevista a esta coluna, a concessionária alegou que o projeto não impacta os moradores dos bairros, por isso não houve um trabalho de comunicação com essas pessoas. Alguns representantes de bairros ouvidos pela coluna – os presidentes da Associação de Moradores do Monte Cabrão e da Vila Pantanal – uma comunidade com mais de 4 mil pessoas dentro do Saboó - não sabiam da existência do projeto da ponte da Ecovias e disseram que a concessionária não os havia contatado até então. O Saboó, que no momento não tem um representante de bairro, conta com a atuação de um voluntário que atua em prol da comunidade.
João Inocêncio, militante que atua em defesa do bairro há décadas, considera necessário o projeto de ligação seca como forma de interligação da Ilha à Área Continental, onde ainda há espaço para desenvolvimento. “O acesso à Área Continental será importante para a cidade, onde temos área de expansão urbana, para criação de moradia para quem vive hoje, por exemplo, em palafitas, áreas de riscos dos morros, e também para o desenvolvimento das atividades portuárias.”
João Inocêncio receia que acessos da ponte possam causar transtornos para os moradores da localidade.
No entanto, ele aponta que os acessos da ponte podem causar problemas de poluição ambiental e sonora no bairro. “A ponte vem do bairro Vila Haddad, Chico de Paula e passa pelo bairro do Saboó. Esse ascendente dela vai causar possível poluição sonora ou ambiental nos bairros. Precisamos discutir esses acessos da ponte.”
Como avançar?
Para Daniela Corrêa, a única forma de avançar na discussão é informar corretamente à população sobre o projeto, o que exigirá antecipadamente uma correção do estudo. Indica também a realização de nova audiência pública, com foco na abordagem integrada entre as soluções possíveis, e a elaboração de um estudo complementar que analise a justificativa apresentada no EIA sobre o problema que o projeto busca resolver (tráfego de cargas e logística) e a solução escolhida, a ponte seca.
A pesquisadora sugere ainda a elaboração de nova pesquisa de percepção, esclarecendo as opções disponíveis, com informações preliminares dos limites de cada opção e relação de custo e benefícios gerados, incluindo valor de pedágio para os usuários. “Uma opção cara não atenderá nenhum usuário e o EIA-Rima não nos informa qual será o valor do pedágio a ser pago.”
Outra sugestão é que se discuta publicamente o projeto da ponte juntamente com o do túnel submerso já licenciado, obrigação do órgão ambiental, prefeitura municipal e câmara dos vereadores, defende. Somente ampliando o diálogo com os técnicos, especialistas, autoridades públicas e com a população se pode escolher o melhor projeto de ligação seca para a região.
* Jornalista, fotógrafa, pesquisadora, docente, pós-doutora em Comunicação e Cultura e diretora da Cais das Letras Comunicação. Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.