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A automatização do trabalho nos portos brasileiros não é uma “vilã” propriamente dita, mas o são as políticas neoliberais que utilizam as novas tecnologias para reduzir postos e precarizar as relações de trabalho. É a análise da professora de sociologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), Carla Diéguez, para quem, no Brasil, essa situação é ainda mais perversa por não haver qualificação dos trabalhadores e recolocação da mão de obra. Confira a entrevista de Diéguez, que também foi colunista do Portogente.
Foto: Internet/Seesp
Portogente - Como as novas tecnologias mudaram as relações de trabalho nos portos brasileiros? O que isso significou de perda para os trabalhadores? O que isso tem a ver com o neoliberalismo no mundo e no Brasil?
Carla Diéguez - Vou começar pela última pergunta. As tecnologias não têm relação direta com o neoliberalismo, mas as políticas neoliberais se aproveitam dela, tanto no Brasil como em outros países do mundo, para avançar sobre o trabalho, reduzindo os postos de trabalho, flexibilizando o trabalho.
Em relação ao trabalho portuário, podemos dizer que a introdução de tecnologias de movimentação de cargas no Brasil resultou em perda de postos de trabalho, com a redução das equipes de trabalho, em especial entre os trabalhadores avulsos tradicionais (estivadores, consertadores, conferentes, vigias), assim como intensificou o trabalho. Operações que demoravam dois, três turnos, às vezes dias, são feitas em um único turno (seis horas). Claro que essa redução do tempo das operações deve-se à automatização dessas operações (automatizado, mas não automático), que agilizam os embarques e desembarques. No entanto, há operações que, em razão da presença de tais tecnologias, intensificaram também os ritmos do trabalho, como a operação de açúcar com uso de shiploader.
Portogente - A implantação dessas tecnologias no Brasil foi semelhante em outros países ou foi mais perversa?
Diéguez - Depende do que estamos entendendo por perversa. Se por perversa estivermos entendendo redução de postos de trabalho e intensificação do trabalho para os trabalhadores que permaneceram no cais, podemos dizer que aqui é mais perverso que em outros países. Em países como Bélgica e Holanda, por exemplo, a implantação das tecnologias resultou redução de postos de trabalho também, mas também em qualificação dos trabalhadores e sua recolocação em outros postos de trabalho, na retaguarda ou na operação das máquinas à distância.
Portogente - Qual a responsabilidade do Estado na requalificação da mão de obra diante da diminuição de postos de trabalho e do deslocamento de atividade? No Brasil há uma política para essa transição?
Diéguez - No Brasil, segundo a Lei nº 8.630/93, que efetivamente mudou as relações de trabalho nos portos brasileiros, quem deve realizar a requalificação da mão de obra seriam os órgãos gestores de mão de obra. Não há uma política clara. Os Ogmos [órgãos gestores de mão de obra] devem promover a qualificação, em conjunto com centros de treinamento especializados, como o Cenep [Centro de Excelência Portuária] em Santos. Paulatinamente isso vem acontecendo. Os trabalhadores portuários têm se requalificado, com vistas a implantação da multifuncionalidade, mas em alguns portos a multifuncionalidade ainda não é uma realidade, como é o caso de Santos.
Portogente - Como o País está em relação à Convenção 137 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que coloca a necessidade de assegurar um mínimo de períodos de emprego ou de renda aos portuários diante dessas tecnologias?
Diéguez - O novo marco regulatório dos portos, a Lei nº 12.815/2013, prevê a renda mínima, acordada entre as entidades representativas de trabalhadores e operadores portuários por meio das negociações coletivas. Ela vale para o trabalhador que atua 100% como avulso. Para aqueles que estão exercendo seu trabalho com vínculo empregatício por tempo indeterminado em operadoras portuárias, a renda mínima já é garantida pelo salário mensal. Não tenho acompanhado essa discussão e não sei em que pé está, mas posso dizer que essa será uma grande batalha para os trabalhadores, pois o que o patronato quer é vincular todos os trabalhadores portuários, colocá-los completamente sobre controle total do capital.
Portogente - Qual seria a receita para o convívio entre tecnologia e mão de obra?
Diéguez - A automatização dos processos de trabalho não é total vilã da história. Ela reduz postos de trabalho, com certeza, mas se os trabalhadores forem requalificados para operar os agora equipamentos automáticos, haverá espaço para a mão de obra. O homem sempre estará presente no processo de trabalho, pois não há processo de trabalho sem o fator humano. No entanto, deve-se observar sempre qual o objetivo da introdução da tecnologia. Se for simples redução de postos de trabalho e intensificação do trabalho, ela sempre será perversa e não haverá convívio possível. Mas se ela visa melhorar os processos, contribuir para a segurança do trabalho, qualificar os trabalhadores, ela pode ser uma aliada na melhoria dos processos de trabalho e na garantia de trabalho produtivo, bem remunerado e digno para os trabalhadores.