Sexta, 22 Novembro 2024

Para o ponta-de-lança Júlio César Oliveira de Moraes, de 47 anos, fazer o gol do título no Campeonato de Futebol dos Estivadores, em Santos, foi o melhor presente de 2006. Jogando pela turma 12, no time do Barcelona do Cais, o portuário é um exemplo do quanto o Porto de Santos é importante para tantos santistas. Em entrevista ao PortoGente, Júlio conta que jogou futebol profissionalmente por 17 anos, mas  realizar esse sonho só foi possível por ele ser um trabalhador portuário avulso. “Quando eu ficava dois, três meses sem jogar, era o dinheiro do porto que sustentava minha casa. Devo muito ao cais de Santos, até hoje”.

 

PortoGente: Quando você começou a trabalhar no Porto de Santos e o que mudou até hoje no seu trabalho?

Júlio César: Comecei no porto em 1984, para poder garantir uma renda que o futebol em si não estava me garantindo. Hoje, a situação mudou tanto para o patrão quanto para nós, avulsos. Eles ganham mais e nós ganhamos menos. O trabalhador ainda não é um escravo, mas tudo que se faz nos armazéns é de forma mecanizada. Antes, a gente trabalhava com a produção, tínhamos lucro se trabalhássemos bastante. Agora, só o patrão leva vantagem. A última decisão do TST que tira o adicional de risco da categoria resume o absurdo que se transformou nossa situação profissional.

 

PortoGente: A família sempre o apoiou no trabalho portuário ou você enfrentou algum tipo de preconceito?

Júlio César: A família para mim foi essencial. Minha esposa Dalva, com quem estou casado há 26 anos, sempre apoiou o trabalho, apesar dos horários malucos que eu ia para o cais, deixando ela sozinha com nossos filhos. Na estiva, a equação é simples e eu sempre disse isso em casa: se você trabalhar, ganha. Se não trabalhar, leva prejuízo. Como não interessava para ninguém perder dinheiro, eu me sacrificava. Pelo menos, vejo que valeu a pena.

 

PortoGente: Como é sua relação com os filhos? Eles têm orgulho de ter um pai portuário?

Júlio César: Orgulho sim, mas nenhum deles se aventurou nesse caminho. O Cleiton tem 25 anos e a Juliana está com 24 anos, ambos bem longe de porto. O garoto está longe literalmente, dando aula de Educação Física na Apae de Florianópolis, desenvolvendo um projeto social muito legal e que me dá um orgulho enorme. A menina mantém dois empregos como auxiliar de enfermagem, nas prefeituras de Guarujá e Bertioga, correndo atrás de um futuro bom para ela. O bom é saber que parte do sucesso profissional deles se deve ao meu trabalho na estiva, que deu um pouco de tranqüilidade para a casa e os permitiu cursar uma faculdade. Devo muito ao cais de Santos, até hoje.

 

PortoGente: Como você faz para se divertir?

Júlio César: Como estou com a idade um pouquinho avançada [risos], dou atenção para a família, minha filha, a esposa (...) já tenho até mesmo uma netinha, o que cria um pouco mais de responsabilidade na gente. Mas chega um determinado momento em que a paixão pelo futebol fala mais alto e procuro meus amigos para jogar uma partida e manter a forma. O brasileiro em si é criado com essa cultura futebolística e eu não fugi disso.

 

PortoGente: Você foi atleta profissional. Em quais clubes jogou ao longo da carreira?

Júlio César: Joguei no Santos, fui ao Chile, defendi o Jabaquara por dois anos e me transferi para o Anapolina, onde fiquei mais dois anos e conquistei o 11º lugar no Campeonato Brasileiro de 1982, um de meus orgulhos. Defendi posteriormente o Operário de Ponta Grossa (PR), Marcílio Dias (SC), Jacareí, Paulista de Suzano, Saltense, Taubaté e Ituano, todos em São Paulo. Parei de jogar com 37 anos, quando vi que a estiva rendia o dinheiro necessário para sustentar a casa e me mantinha próximo da família, por mais que os horários fossem inconstantes. Mas tanto a jornada de um futebolista quanto de um portuário são ruins para o convívio familiar. Pelo menos com o porto eu posso morar em Santos.

 

PortoGente: Qual a importância do Campeonato de Futebol para os estivadores?

Júlio César: Anualmente se faz o Campeonato de Futebol dos Estivadores, uma tradição de mais de sete décadas. A maior parte dos colegas encontra no futebol a única forma de diversão, por isso o campeonato é tão badalado pela comunidade. Nós, da turma 12, escolhemos há dois anos o nome Barcelona porque a equipe espanhola estava ganhando tudo na época e servia de inspiração para nós, meros avulsos. Desde a década de 80, quando comecei a participar do campeonato, é a primeira vez que ganho um bi-campeonato, algo histórico. No total, ganhei seis vezes a competição, mas a desse ano guardarei para sempre na memória.

 

PortoGente: Como foi a final contra a turma 11, o Jararaca do Cais?

Júlio César: Foi um jogo muito disputado, mais que muita partida profissional que joguei em minha carreira. No dia da final choveu muito, deixando o campo pesado, cheio de lama, mas tivemos a experiência de administrar uma derrota até o fim do jogo, quando empatamos a partida, forçando uma prorrogação. Meu gol também foi algo sobrenatural, pois tentei cruzar a bola para o Marcinho, nosso centroavante, e quando vi a bola estava na rede. Não tive como pensar em nada e saí comemorando o gol do título. A turma 11 deu muito trabalho, valorizando nossa vitória, em uma categoria que tem no futebol uma de suas poucas alegrias.

 

PortoGente: Jogar futebol ajuda a manter a forma física para enfrentar o trabalho no cais?

Júlio César: Claro, é um elemento importantíssimo para que nas horas de folga a gente mantenha o corpo em forma, senão fica difícil segurar o ritmo puxado de trabalho no Porto de Santos. Temos um companheiro, o Paulo Sérgio Feliciano, que está com 54 anos e joga normalmente, pois tem prazer em disputar uma partida com os amigos e sabe da importância do esporte para o bom desempenho no serviço. A maior prova de que os estivadores usam o futebol também como ferramenta para manter a forma física é que o campeonato existe há 75 anos de forma ininterrupta.

 

Números e história

Na final realizada em 1° de dezembro último, o Barcelona (turma 12) venceu na prorrogação o Jararaca do Cais (turma 11) por 2 x 1, sagrando-se bi-campeão do Campeonato de Futebol dos Estivadores. A cada dois anos, as turmas são reorganizadas, o que faz os times mudarem suas escalações no mesmo período. A conquista do Barcelona em 2006 entrou para a história, pois foi apenas a segunda vez em 75 anos que uma turma ganhou os dois campeonatos que disputou. A outra equipe a conseguir a façanha foi a turma 11, nos anos de 1986 e 1987.
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