Quinta, 26 Dezembro 2024

escrito por Paulo Roberto Filomeno

A diversidade de bitolas é algo que claramente prejudicou o desenvolvimento do transporte ferroviário no Brasil desde a inauguração da primeira ferrovia. Foram poucos os casos em que ferrovias diferentes verdadeiramente promoveram uma integração com a mesma bitola. E nunca houve uma política governamental, do Império ou da República, que deu a atenção que esse assunto mereceria, exceto na época do regime militar, que será comentado abaixo.

Chegamos a ter absurdos como o que ocorreu por muitos anos na ligação ferroviária entre Rio de Janeiro e São Paulo; em Cachoeira Paulista, onde se encontraram a Cia. Ferroviária São Paulo-Rio com a E. F. Dom Pedro II (depois E.F. Central do Brasil), a ferrovia de São Paulo a Cachoeira foi construída com bitola de 1,0 m, o trecho da EF Dom Pedro II foi construído com bitola de 1,6 m... a bitola acabou por ser alargada no trecho paulista depois de mais de 25 anos após a inauguração!

Outro absurdo ocorreu em São Paulo; a Cia. Paulista, após chegar em Rio Claro com a bitola de 1,6 m, que vinha desde Santos com a São Paulo Railway até Jundiaí e daí até Rio Claro com a Paulista, viu que a linha prolongada pela Companhia Rio Claro foi concedida para ser construída com a bitola de 1,0 m. Existem muitos outros exemplos. Uma rápida olhada na tabela das primeiras ferrovias construídas no Brasil mostra várias bitolas.

Daí se vê que as concessões ferroviárias no Brasil não primaram por um critério que estabelecesse a integração das diversas ferrovias como algo primordial. Ao contrário, as próprias ferrovias tratavam a sua zona de atuação como algo intocável, onde qualquer tentativa de aproximação de um concorrente era visto como uma ameaça que tinha que ser contida a qualquer custo, mesmo que isso implicasse na construção de ramais anti-econômicos para bloquear o avanço do concorrente, com o único intuito da manutenção do "status quo" existente.

No exterior, países como os Estados Unidos e vários outros da Europa, trataram de unificar a bitola ainda no século 19. Optou-se pela bitola de 4,7 pés (1,435 m). Os motivos desta opção não são totalmente claros, há algumas lendas que são comentadas, que esta distância vem desde o tempo das bigas romanas...

O que realmente houve é que a época da unificação das bitolas no hemisfério norte coincide com a época de construção de diversas ferrovias no Brasil, então havia muito material ferroviário "disponível" nesses países e que puderam ter utilização aqui. Então, além da falta do critério técnico para uniformização das bitolas, talvez tenha havido um componente político junto aos governos imperial e posteriormente aos republicanos, exercido pelos países ditos desenvolvidos da época, para a aquisição desses materiais...

Mas houve no Brasil uma política de uniformização de bitolas durante o regime militar. Decidiu-se naquela época que todas as ferrovias existentes ao paralelo abaixo de Brasília seriam construídas na bitola de 1,6 m (inclusive os metrôs) e que em um determinado dia da década de 80, as mesmas ferrovias abaixo do paralelo de Brasília deveriam estar com suas bitolas unificadas em 1,6 m. Como sabemos, essa política não deu certo e o critério que o motivou permanece obscuro. Por causa de tal política, organismos internacionais classificaram o Brasil como "país sem visão" no campo ferroviário, dificultando a concessão de empréstimos para a área, pois a bitola de 1,6 m não é utilizada nos países vizinhos (Argentina e Uruguai), apenas é utilizada em pouquíssimos países além do Brasil.  As bitolas das ferrovias de Argentina e Uruguai, que chegam até nossas fronteiras, são de 1,435 m, impedindo a integração ferroviária entre o Brasil e seus vizinhos do sul. Além disso, a bitola de 1,6 m faz com que o material ferroviário a ser despachado para o Brasil tenha um custo maior do que o da bitola padrão, pois esta, sendo "de prateleira" não requer projetos adicionais e tem um preço menor.

Ou seja, a única política nesse campo foi um fiasco. E o problema nunca foi atacado de frente, exceto em algumas poucas iniciativas das próprias empresas ferroviárias, onde os problemas da não integração eram piores do que a concorrência entre as ferrovias. Um exemplo é o alargamento da bitola da E.F. Araraquara para interligar-se à Cia. Paulista, na década de 50. Nem a RFFSA conseguiu tal feito apesar de um dos objetivos da sua criação era integrar as diversas ferrovias que haviam antes de 1957. Tampouco a Fepasa fez isso no Estado de São Paulo, embora tenha implantado bitola mista entre Santos e Paulínia, fazendo de alguma forma a convivência das duas bitolas no "funil" que dá acesso ao porto de Santos, de forma a convergir os dois sistemas de diferentes bitolas (larga e métrica) numa única via.

Nesse caso, considerando a impossibilidade do Brasil partir para uma unificação na bitola padrão, a utilização de bitola mista parece ser a melhor solução, com a implantação de um terceiro trilho nas linhas de bitola de 1,6 m. Esta bandeira defendida pela ANTT, não prevê grandes investimentos e pode ser realizado rapidamente.

Porém, apesar da obviedade da solução, temo que barreiras nesse sentido sejam colocadas pelas atuais concessionárias que operam em bitola de 1,6 m. Estas poderão não ter interesse em dividir suas redes com outras operadoras, pois não haverá tráfego mútuo, apenas o raio de ação da rede de bitola de 1,0 m será ampliado, fazendo com que as operadoras dessa bitola passem a ter uma certa vantagem. As concessionárias que operam em bitola de 1,6 m continuarão restritas à sua área de ação, pois obviamente uma locomotiva de bitola 1,6 m não poderá passar nas linhas de bitola de 1,0 m. E é muito mais oneroso transformar um trecho originariamente construído em bitola de 1,0 m num trecho de bitola mista, pois implicará em substituição de dormentes e alterações de gabarito. Uma forte intervenção do Governo, Ministério dos Transportes, ANTT e até entidades de classe deverá haver para que essa mudança do "status quo" ocorra. Nesse caso o interesse público deve sobrepujar-se ao interesse privado.

Pois se isso for realmente implantado, haverá definitivamente uma unificação das bitolas no Brasil, em 1,0 m. Se essa bitola não é a ideal, é perfeitamente possível sua utilização por grandes trens unitários, haja vista a operação da E.F. Vitória-Minas, da CVRD ser nessa bitola.

Atualmente temos no Brasil cinco bitolas, conforme abaixo:

1,6 m - Utilizada pela MRS e ALL, concentrada na região sudeste. Bitola originária das antigas E.F. Santos-Jundiaí, Companhia Paulista, E.F. Araraquara e E.F. Central do Brasil (incluindo o trecho da Ferrovia do Aço). A Ferronorte (agora controlada pela ALL) foi e vem sendo construída nesta bitola. Os Metrôs de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília também possuem esta bitola.

1,0 m - Utilizada pelas demais operadoras ferroviárias, ALL (linhas da região sul e da ex-E.F. Sorocabana e E. F. Noroeste do Brasil), FCA (antigas linhas da Cia. Mogiana, Leopoldina, linhas de bitola métrica da E.F. Central do Brasil, Leste Brasileiro e Viação Férrea Centro-Oeste), CFN (linhas do nordeste brasileiro, ex-Great Western, Central do Piauí, etc.).

Estas são as duas principais, que cobrem a quase totalidade do sistema ferroviário nacional. Outras bitolas utilizadas no Brasil são:

1,435 m (que é a "bitola padrão", utilizada nos EUA e maior parte da Europa e em muitos outros países). No Brasil esta bitola são utilizadas na E. F. Amapá, recentemente reativada e E. F. Jari, mas isoladas de qualquer outro sistema ferroviário e também numa das linhas do Metrô de São Paulo (Capão Redondo - Largo 13), também isolada dos outros sistemas, embora essa linha permita integração com a CPTM em Santo Amaro.

0,76 m - Esta bitola foi utilizada até 1982 pela Viação Férrea Centro-Oeste, cobrindo várias cidades mineiras numa linha que chegou a 700 km (nos últimos tempos pouco mais de 200km), tendo sido quase que totalmente erradicada, restando apenas um trecho de 17 km entre São João Del Rey e Tiradentes. É utilizada apenas para fins turísticos.

0,60 m - Esta bitola foi muito utilizada em pequenas ferrovias alimentadoras dos troncos ou em ferrovias que tinham apenas um tipo de carga para serem transportadas. Podemos citar os ramais de Serra Negra e de Santa Rita, das ex-Cias. Mogiana e Paulista, respectivamente, além das E. F. Funilense, Cantareira, entre outras. Todas foram erradicadas, restando apenas a Estrada de Ferro Perus-Pirapora, que era utilizada para transporte de calcário entre Cajamar e Perus. Hoje se encontra desativada e algumas entidades preservacionistas tentam reativá-la para fins turísticos, já que é talvez a única ferrovia dessa bitola no mundo ainda preservada, contando inclusive com material rodante em condições de ainda ser utilizado.

Dessa forma verificamos que, apesar das 5 bitolas diferentes, apenas as bitolas de 1,0 metro e 1,6 metro são significativas para o sistema ferroviário nacional. Conforme vimos, a bitola de 1,6 m concentra-se na região sudeste e conecta as 3 principais cidades brasileiras (SP, RJ e BH) e que as ferrovias originárias desta bitola eram de padrões técnicos elevados.

A bitola de 1,0 metro, apesar de cobrir a maior parte do território nacional sofre uma descontinuidade entre São Paulo e Rio, pois toda a ligação ferroviária sul-norte passa pelo trecho de bitola mista da ALL entre Mairinque e Campinas e nesta cidade as linhas da FCA passam a ser utilizadas. Dessa forma, uma carga que vem do sul por bitola métrica, chega a Belo Horizonte após passar pelo Triângulo Mineiro e somente chega ao Rio de Janeiro após passar pela região de Cataguases e Três Rios, dando uma enorme volta. Os trechos ferroviários de bitola métrica que poderiam fazer esta ligação SP-RJ em bitola métrica foram erradicados nas décadas de 80 e 90, sem um estudo sequer para um aproveitamento daquelas linhas. Portanto a rota de contingência do transporte ferroviário entre as duas maiores cidades do país é de mais de 1600 km, contra 500 km na linha da bitola larga. O uso da bitola mista entre nossas principais cidades, se não resolve a situação de contingência, fará que o corredor ferroviário norte-sul seja substancialmente melhorado, tanto em distância como em penetração.

No Nordeste, as ferrovias, todas em bitola de 1,0 m partem das capitais em direção ao interior dos estados, porém não se integram, é como uma teia de aranha não fechada no centro. A Transnordestina, idealizada para suprir essa deficiência "fechando" essas pontas, teve cogitada sua construção em bitola de 1,6 m,!!!! E isso parece mesmo ser verdadeiro, haja visto que diretriz da ANTT diz que todos os novos projetos ferroviários terão essa bitola. Só fará sentido se esta nova ferrovia se integrar à EF Carajás, (da CVRD) e com a ferrovia Norte-Sul. E que o terceiro trilho, para a bitola mista, seja considerado desde já no projeto para que as ferrovias do Nordeste sejam verdadeiramente integradas.

Outro fato é a ferrovia Norte-Sul, que vagarosamente vem descendo pelo estado do Tocantins, esperando-se que chegue em Brasília. Ela está sendo construída em bitola de 1,6m, enquanto que em Brasilia a ferrovia termina em bitola de 1,0 m. Houve notícias que, para evitar a quebra da bitola em Brasilia, a Norte-Sul seria prolongada até encontrar-se com a Ferronorte em algum ponto do Mato Grosso do Sul, saindo da diretriz natural da via, que poderia muito bem integrar-se em Colômbia, SP, ponta de trilhos em 1,6 m sob concessão da ALL, evitando-se o gargalo no trecho entre Araraquara e o tal ponto no Mato Grosso do Sul. Com a utilização da bitola mista na ferrovia Norte-Sul acima de Brasília e com a integração dela à rede de bitola de 1,6 m da ALL estaria criaria uma terceira rota Norte-Sul, desta vez com as duas bitolas e aí sim teríamos uma verdadeira integração ferroviária Norte-Sul.

Hoje, pelo fato de existirem diversos gargalos e o planejamento mal feito acaba por fazer com que apareçam mais alguns, as concessionárias, tendo áreas de atuação claramente definidas, acabam promovendo o transporte ferroviário apenas dentro de sua área, levando as cargas geradas dentro de sua área aos portos e terminais atendidos por sua malha.

Em função disto, cada concessionária parece comportar-se como as ferrovias do passado, focando-se na sua própria área e defendendo apenas seus próprios interesses. Isso é reflexo do programa de concessões ferroviárias executado pelo governo. Este programa definiu que os investimentos fossem realizados especialmente na zona da concessão (o que era de se esperar), pois o sucateamento da malha da ex-RFFSA era enorme e o programa de privatização previa tal recuperação. Por outro lado, caso fossem exigidos investimentos em integrações com as outras concessionárias, o leilão de privatização corria o risco de se transformar num fracasso. Haja visto que os preços obtidos pelas concessões foram, em alguns casos, insuficientes para cobrir o custo que o governo teve para deixar a concessão mais "apetitosa". Por exemplo, o Estado de São Paulo investiu na ponte rodo-ferroviária sobre o Rio Paraná, em Santa Fé do Sul uma quantia bastante superior àquela que foi conseguida no leilão de privatização da Malha Paulista (ex-Fepasa).

Hoje estamos assistindo à unificação de duas empresas de telecomunicações, praticamente voltando, no caso da telefonia fixa, à situação existente pré-privatização, ao contrário do que se esperava àquela época, que era o aumento da concorrência. Tudo isso com as bençãos do Ministério das Comunicações e do BNDES, com a imprensa noticiando amplamente o fato. Fundos de pensões e empresas privadas digladiam-se por maior participação acionária nessas empresas, promovendo tais fusões em detrimento do que se havia imaginado com o programa de privatizações. Por outro lado, o Ministério dos Transportes parece não enxergar que o programa de privatização do nosso transporte ferroviário minou a concorrência. Noticiam-se sucessivos recordes de aumento de cargas através do transporte ferroviário, porém isso é fruto dos investimentos realizados pelas concessionárias. A malha estava a tal ponto sucateada que há espaço para crescimento sem construção de novas linhas, apenas a melhoria da condição das linhas existentes faz com que o crescimento aconteça. Mas não há qualquer política para que grupos e interesses privados possam, à semelhança das telecomunicações, realizarem uma integração que faça com que cargas possam ser movimentadas de norte a sul do Brasil através da via ferroviária.

Em nosso entendimento, para o transporte ferroviário ter a participação que merece e que o crescimento do país exige, o governo deve fomentar:

  1. Ações sérias de integração entre as diversas concessionárias se preciso com financiamento do BNDES, permitindo que elas busquem cargas em qualquer ponto do país, esteja ou não dentro de sua área de concessão.
  2. Novos trechos ligando pontos que desfaçam gargalos existentes ou facilitem escoamento de cargas (ex. Anel ferroviário de SP);
  3. Uma política constante e séria de implantação de terceiro trilho nas linhas de bitola larga, com participação e envolvimento de todas as concessionárias, já que a unificação numa bitola padrão parece impossível pelo volume de investimentos necessários para tal.

Este último ponto será a ação que verdadeiramente fará com que o transporte ferroviário no Brasil passe a ser considerado desenvolvido. Por enquanto tratam-se apenas de malhas ferroviárias fracamente integradas e não uma rede ferroviária unificada. E sem integração de bitolas continuaremos assim.

Não conseguimos realizar a verdadeira integração ferroviária em mais de 150 anos de ferrovia. Vamos torcer para que os governantes passem a enxergar a ferrovia com o cuidado que ela merece, exigindo investimentos dos concessionários não visando apenas melhorias nas suas área de atuação, mas para uma verdadeira integração das ferrovias do Brasil. E aí o BNDES tem seu verdadeiro papel. Em longo prazo, todos ganharão, Brasil e seu povo inclusive.

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