Especialista discute a repercussão dos 200 anos do Brasil e aponta políticas públicas para a população negra
Celebrado em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra marca a história do Brasil como símbolo de resistência da cultura afrodescendente no país. Decretada oficialmente pela Lei nº 12.519, em novembro de 2011, a data faz referência à morte de Zumbi, o então líder do Quilombo dos Palmares. A ocasião une vários segmentos sociais, para reivindicar maior espaço no âmbito das discussões e decisões políticas.
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De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2019, 42,7% dos brasileiros se declararam como brancos, 46,8% como pardos, 9,4% como pretos e 1,1% como amarelos ou indígenas. Apesar da amostra ser auto declaratória, a população brasileira é majoritariamente negra. Dados do IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostram que 54% da população brasileira é negra.
Em busca de uma sociedade mais igualitária e inclusiva, o dia histórico visa compreender os processos que resultaram na exclusão social e política de grandes parcelas da população. Políticas de distribuição de renda, leis adequadas e não discriminatórias e proteção salarial são alguns pontos de reflexão que a data remete. Portanto, as políticas de cultura, de saúde, de previdência, de cotas e educação, de criminalização do racismo, de povos e comunidades tradicionais, devem ser vistas como diferentes manifestações do mesmo esforço antirracista.
O antropólogo, professor do curso de Núcleo de Educação à Distância do CEUB Saulo Pequeno explica o papel das políticas públicas como forma de reduzir as desigualdades, tendo em vista o desenvolvimento econômico e a universalização da cidadania. Confira a entrevista na íntegra:
Em 2022, o que o Dia da Consciência Negra representa para a sociedade brasileira?
SP: 2022 é o ano do bicentenário da Independência, um marco interessante para pensar o que é ser uma nação independente, com controle do seu presente e sonhos para o futuro. Estes 200 anos de Brasil, e outras centenas de anos antes, foram formados com base na desigualdade racial, desde a escravização de pessoas negras até a subalternização racial dos dias atuais, que perpetua essas desigualdades.
Antes, a escravização era a exploração do trabalho, que hoje se observa no emprego precário, na desigualdade salarial e limitação de oportunidades. Antes, havia a mulher escravizada para a Casa Grande e a ama de leite, hoje as trabalhadoras domésticas, por vezes, são forçadas a dedicar poucas horas às próprias crianças para cuidar e educar as crianças de patrões. Antes, os corpos eram restritos às senzalas, e hoje se observa o encarceramento e genocídio da juventude negra. Antes, era empregada a violência para esquecer línguas e costumes para aprender costumes, religião e língua coloniais, hoje se observa a perseguição e violência contra praticantes e templos de religiões de matriz africana como o Candomblé.
Mesmo com avanços importantes, como a criminalização do racismo, direitos trabalhistas de trabalhadoras domésticas, constitucionalidade de cotas raciais e mecanismos para regularização de territórios quilombolas, as violações de direitos e práticas racistas ainda superam, e muito, as importantes conquistas. A independência não deve ser pensada somente como nação, mas independência da sua população, das desigualdades e racismo que retiram a possibilidade de uma vida plena.
Quais são as principais pautas levantadas no Dia da Consciência Negra?
SP: Observamos pautas que procuram atuar sobre as múltiplas manifestações do racismo, que podemos agrupar, em justiça social, fortalecimento da história e cultura negras, ações afirmativas, e fortalecimento de matrizes tradicionais. Justiça social diz respeito à contenção das violências - sejam elas praticadas por pessoas e instituições como a ofensa racista e o racismo recreativo, ou praticadas pelo Estado como a brutalidade policial racializada ou a necessidade de revisão penal da injúria racial - e busca por alcance material, real, dos direitos sociais e civis para a população negra.
O fortalecimento da história e cultura negras está relacionado ao crescimento da representatividade e visibilidade de pessoas negras em espaços de projeção cultural, de poder, de gestão e decisão; para o reconhecimento de intelectuais negras do presente e do passado, e a formação das gerações futuras para além da reprodução do racismo e suas violências. Nesse sentido, um marco importante é a Lei 10.639/08 e a sua modificação para a Lei 11.645/09 que institui a educação escolar de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena. Ainda neste grupo, a visibilidade para a estética negra, beleza negra, referenciais culturais negros.
As ações afirmativas procuram atacar o caráter estrutural do racismo, para romper com ciclos de reprodução da desigualdade racial que se articula entre educação, trabalho, conhecimento, família, saúde e saneamento etc., na forma de políticas que são desenhadas para dar oportunidade a pessoas negras, como as cotas raciais. E o fortalecimento de matrizes tradicionais diz respeito ao combate ao racismo religioso, o combate ao preconceito contra religiões e culturas africanas e afro-brasileiras, conhecimento e respeito a populações tradicionais como comunidades quilombolas, povos de terreiro, culturas populares tradicionais e dignidade de vida para suas mestras e mestres.
Qual é a importância da data e das ações de sensibilização acerca do tema?
SP: A existência de um dia para evidenciar a consciência negra é uma conquista importante da militância negra por chamar a atenção às suas pautas, e como um marco civil, ou melhor, um marco civilizatório para o Estado brasileiro para que reconheça a formação racial brasileira, as belas manifestações culturais e intelectuais negras, o racismo e a atuação negra, como constitutivas daquilo que o Brasil é.
Mas também é importante destacar que um dia de ação isolado pode criar somente uma “trend” passageira, que cria o hype de um dia, o que contraria o próprio propósito de um marco civilizatório. O Dia da Consciência Negra é importante como uma data de articulação e intercâmbio de estratégias de luta que devem ser implementadas e refletidas por todo o ano.
A questão do racismo está enraizada na população brasileira?
SP: A República brasileira é formada a partir do mito da democracia racial, uma abordagem equivocada e que contraria as evidências dos jornais, e dos institutos de pesquisa como o IBGE, do IPEA, do CEERT, do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, entre outros. O mito da democracia racial é bastante atraente porque reforça uma autoimagem de pessoas e sociedades bondosas, em que as práticas racistas são 'sem querer', 'só brincadeira' ou centenas e centenas de racismos como 'casos isolados'.É uma visão superficial que só reconhece racismo na forma institucional da escravidão ou apartheid, sem perceber as dinâmicas do cotidiano.
A percepção do caráter estrutural do racismo auxilia a perceber como práticas de agressão, violência, assassinato, limitação de oportunidades, de escolarização, de saúde, saneamento etc. estão relacionadas, reforçam e realimentam os estereótipos racistas. João Pedro Mattos, Genivaldo de Jesus Santos, Moïse Kabagambe, Claudia da Silva Ferreira, Eddy Jr. são alguns casos recentes de ampla repercussão que não deixam o mito da democracia racial se sustentar minimamente.
Quais medidas e políticas públicas podem ser adotadas para o combate ao racismo e desigualdade social que atingem a população negra do país?
SP: Nesse ponto, é importante dizer que recentemente há um tipo de abordagem que coloca as reivindicações por igualdade racial como "identitarismo", o que é um equívoco no seguinte sentido: não se procura uma valorização da identidade solta de outras dimensões da formação social. Isto é, não é suficiente uma pessoa negra se sentir bem com o cabelo crespo, mas continuar sem educação, saúde, comida e trabalho, por exemplo. Não é suficiente ter acesso a trabalho e o ambiente institucional reproduzir violência racial. Tampouco é suficiente uma pessoa conseguir educação, mas ao longo dos estudos não conhecer ou valorizar intelectuais e perspectivas de cultura e conhecimento negras. Os fenômenos sociais raciais atravessam as vidas das pessoas ao mesmo tempo, e o combate ao racismo é pensado e articulado para atuar em todas as dimensões.