Instrumento já vem sendo implantado no Chile com a participação da sociedade civil e demais agentes do setor
Há 39 anos no Brasil, ele considera o país seu segundo porto de chegada. Carlos Andrés Hernández Arriagada é natural de Valdívia, ao sul do Chile, formada pela parte insular e pelas ilhas de Macera, Corral e Islaterra (onde nasceu) e se caracteriza pelo fato de ter sofrido o pior terremoto da história, nos anos 1960. O pesquisador e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, da capital paulista, conversou com o Portogente sobre diversos temas ligados aos portos, à infraestrutura e às relações humanas que estão em todas as atividades econômicas.
Carlos Andrés Hernández Arriagada, no Porto de Valparaíso, no Chile. Crédito: Arquivo pessoal.
Para ele, não é mais possível pensar o porto meramente como uma zona de saída e entrada de mercadorias, ou de estocagem, sem pensar que ele tem dinâmicas ambientais, impactos de flora e fauna local, dinâmicas econômicas e territoriais, dinâmicas de modernização no sentido da inovação naval, por exemplo, que é importante para as estruturas portuárias.
A conversa foi emocionante, Hernández mostrou, além de sabedoria no ofício, ser uma pessoa realmente comprometida com a sociedade. A entrevista foi tão boa e com assuntos diversos que resolvemos fazer uma série, que vai ao ar nesta semana.
Neste primeiro bloco da entrevista discorremos sobre sua trajetória profissional e acadêmica, focos da sua pesquisa. Nos próximos dias, vamos falar de privatização; o papel da sociedade na gestão portuária e o papel do Estado na articulação entre o público e o privado; desenvolvimento local e nacional; como conciliar a tríade porto-cidade-sustentabilidade; a importância da hinterlândia; em tempos de pandemia como reinventar a questão sanitária dos portos e o corredor bioceânico, que visa interligar os litorais do Oceano Atlântico e o Oceano Pacífico no Cone Sul da América do Sul.
Quem é
Carlos Andrés Hernández Arriagada, atualmente, faz Pós Doutorado no Instituto de Estudos Urbanos (IEA), na Universidade de São Paulo (USP), no Núcleo Cidades Globais, com o trabalho "A Hinterlândia como Promotora Territorial de Áreas em Transformação Advindas do Processo de Desindustrialização". É doutor em Arquitetura e Urbanismo com a tese "Estratégias Projetuais no Território Portuário de Santos" e mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie. Graduou-se, em 2000, em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade São Judas Tadeu. É pesquisador e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie no curso de Arquitetura e Urbanismo. E coorientador do curso em Processos Urbanos Sustentáveis, da Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Geografia da Universidade de Concepción, no Chile.
Como sua trajetória acadêmica e profissional te constituiu um intelectual que se aproximou da temática portuária?
Carlos Andrés Hernández Arriagada - Obrigada ao Portogente, pois é um voto de confiança pelo trabalho que vocês fazem e pelas pessoas que convidam para ter uma interlocução, pude me dar conta que tratam de temas peculiares e importantes. Brinco que ser chileno é ser resiliente frente a todas as intempéries em que a gene vive geograficamente. Sou arquiteto de formação e digo que estou de professor, minha formação passa diretamente por uma visão desde o primórdio, a respeito de uma preocupação com grandes infraestruturas sejam elas pelos aspectos da ferrovia e o aspecto do porto vem de uma maneira bem tangível, no final dos anos 1990, período em que me formo. Vou completar 20 anos de formado.
A temática em si me levou para algumas considerações, porque são áreas que no fundo têm a ver com a degradação urbana, do espaço público, da infraestrutura, de zonas industriais. Aqui em São Paulo moro num bairro industrial, o Brás, eu vi ele se modificar nos anos 1980-1990. O que me levou de fato como arquiteto a me debruçar um pouco foram algumas experiências nesse âmbito da degradação do espaço, isso tem a ver com uma trajetória de ter trabalhado cinco anos no agreste de Sergipe, captando recursos, então você vê uma série de situações nas relações das cidades e seus pequenos rios, as relações de ocupações humanas e surge disso o que vem como formação, uma preocupação de onde estariam as principais áreas de degradação nas cidades na zona portuária. Tudo isso se soma a ter nascido em uma região de ilha e ter uma preocupação muito grande com em relação às águas.
Ao longo da minha carreira e estudo, como no mestrado e doutorado, quero compreender mais soluções para essas zonas urbanas como cenários e desenvolvimento de estratégias para as zonas portuárias.
Qual a sua grande responsabilidade como acadêmico?
Sou contra a produção exacerbada de paper, que determinados profissionais, especialmente arquitetos, têm a obrigação de gerar soluções para serem aplicadas nessas zonas urbanas com problemas, afinal de contas, de todas as profissões que temos, na economia, na geografia, sociologia, matemática, o profissional que tem a responsabilidade com a cidade é o arquiteto. E isso é muito pesado, porque estamos lidando com o outro, com a percepção das pessoas, com uma série de outras ações e agentes no território, que são importantíssimas para as zonas, especialmente as degradadas, e que são pouco debatidas no Brasil.
Pouco se fala sobre a degradação de uma estrutura ou de uma infraestrutura. E o porto surge com esse desafio. Diria que estou debruçado nisso, trabalhando com isso desde 2002, já é bastante tempo. Com o olhar do acadêmico e com o trabalho de consultoria, conheci e pude trabalhar na zona portuária de outros países, da América Latina e da Costa africana. É a busca de soluções com imersões intelectuais que não serão para mim, para vocês ou para nossos filhos. Mas talvez seja uma série de possíveis ideias de valores corretos que poderão ajudar no futuro. É essa minha preocupação nesse momento.
Você nos falou sobre suas prioridades no ensino, pesquisa e extensão. Basicamente suas pesquisas partem da vida real. Mas gostaria que trouxesse esse viés para dentro da temática do porto, cidade e sustentabilidade, e como que essas experiências de pesquisa em África e América Latina podem trazer aprendizados para pensar a sociedade contemporânea e esses espaços urbanos?
Vou pensar a partir de dois exemplos em como isso colabora com as relações de fato das pessoas no porto, as suas relações de ocupação com o porto. Trabalhe, em 2014, junto ao Instituto de Formação da Gestão Pública, junto aos governadores angolanos, em Luanda, Kuango Kubango e Benguela. Luanda e a capital e se caracteriza por um porto dinâmico de demandas significativas. Assim como o Porto de Tangermed, na Costa do Marrocos, ou o Porto de Lagos, na Nigéria.
Luanda acabou virando uma zona de estocagem de contêineres em desuso. Aí temos um setor em potencial para novos elementos, processos de industrialização, renovação de industrialização de um insumo que é complicadíssimo quando ele é descartado. Segundo, tem uma zona frente mar, onde uma parte é utilizada para o descarte de embarcações. O principal "cemitério" de embarcações da África está em Luanda, o que gera uma economia informal muito grande por causa do desmanche que essas embarcações acabam sofrendo.
Isso nos demonstra, potencialmente, o quanto são importantes as zonas de estaleiros, a configuração e a formação dessas zonas como motores de desenvolvimento territorial, geração de emprego, tecnologia naval aplicada. É algo que precisamos olhar, pois as nossas zonas de estaleiro no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro, estão passando por um processo de falência. Veja o que tem acontecido nas últimas semanas: a Petrobrás encomendando grandes embarcações petroleiras, especialmente graneleiros, para a China; e ainda se discute a transferência da manutenção das plataformas, que era feita na zona de Niterói, para portos europeus. Estamos dando um passa atrás na importância que uma zona de estaleiro tem para a geração de emprego.
Dessas experiências, você poderia nos trazer algum exemplo relação porto-cidade na gestão portuária na América Latina?
Na Costa do Pacífico, no Chile, a cidade de Talcahuano, onde se localiza o segundo principal porto da costa chilena, está com um trabalho interessantíssimo, não só de aplicação, mas de investigação com a Universidade de Concepción. Estão levando para o debate chileno a formulação de mesas de diálogo entre a sociedade civil e o agente portuário como instrumento de gestão pública, para estabelecer novas relações entre pessoas e ocupação, entre cidade, porto e o equipamento portuário. Não é mais possível pensar o porto meramente como uma zona de estocagem, sem pensar que ele tem dinâmicas ambientais, impactos de flora e fauna local, dinâmicas econômicas e territoriais, dinâmicas de modernização no sentido da inovação naval, que é importante para as estruturas novas portuárias. A gestão desses estaleiros para pequenas embarcações, como as pesqueiras, é fundamental para a novas tecnologias.
Pode nos dar um exemplo disso aqui no Brasil?
O [Estado do] Maranhão tem nos seus estaleiros escolas e tem três ou quatro carpinteiros para dar continuidade, por exemplo, à construção de embarcações pesqueiras. Não é só o grande estaleiro, com uma grande estrutura navieira, mas é o pequeno produtor também. Essas mesas de diálogos são oportunidades para que esses agentes também tenham voz. Acho isso muito importante nesse debate, pois são exemplos contraditórios que se somam.