Quinta, 21 Novembro 2024

Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-Unicamp

A visão liberal da história enxerga qualquer moeda apenas como uma mercadoria a mais, escolhida segundo critério de comodidade e/ou segurança por um sistema econômico auto regulável, sem a arbitrária intervenção estatal. Assim, a história monetária se reduziria à pesquisa das distintas características essenciais ou requisitos físicos da moeda-mercadoria.

Nesse sentido, essa visão se confunde com a numismática, isto é, a ciência que se ocupa das moedas. Numisma é a moeda cunhada por senhores feudais, daí a etimologia da expressão “senhoriagem”: tributo que se pagava como reconhecimento de um senhorio. Referia-se ao direito que o concessionário da cunhagem da moeda pagava ao soberano. Na época contemporânea, se transformou na diferença entre o valor real – poder aquisitivo de fato – e o valor nominal da moeda: aquele com que o Estado emissor paga seus funcionários e fornecedores.

Na verdade, os atributos físicos requisitados para ser uma moeda pouco importam para nos entendermos sua essência. Por exemplo, a pedra-moeda, na Ilha de Yap, na Micronésia, não oferecia muita facilidade de manuseio e transporte como ocorre quando pequena quantidade corresponde a grande valor. Esculpia-se a moeda e a fincava na terra como símbolo de riqueza atribuída pela comunidade aos detentores.

É mera curiosidade saber que o sal foi escolhido, para evitar falsificações, por sua indestrutibilidade e inalterabilidade – exceto com liquidez, quando vira água salgada do mar. Daí o pagamento de “salário”. Pecus (gado) não permite divisibilidade, para dar trocos, e uma boa moeda tem de permitir múltiplos e submúltiplos. Um boi todo “marcado” em seu couro o dificulta ser transferível pelo portador.

Pecus está na etimologia de pecuniário – relativo a dinheiro – e peculato: crime de desvio de um patrimônio ou valor público por funcionário que tenha acesso a eles em razão da sua função. É crime específico do servidor público (ou equiparado como político profissional em “cargo de confiança”) e trata-se de um abuso de confiança pública.

As formas de moeda foram se transformando em direção à sua “invisibilidade” material: moeda-mercadoria - metal-cunhado - papel-moeda conversível - moeda fiduciária (não-conversível) - moeda bancária (escritural). Houve progressiva desmaterialização.

A moeda-bancária, por exemplo, exigiu a constituição do sistema bancário, o uso generalizado do cheque com câmara de compensação, e a percepção de que a reconversão ao lastro monetário, isto é, ao encaixe bancário, não era solicitada por todos clientes ao mesmo tempo. Toda fidúcia está baseada em confiança. Logo, todas as formas de moeda se respaldam em crença: ação de crer na possibilidade de alguma coisa. É espécie de convicção íntima ou opinião que se adota com fé quase religiosa. O especulador a respeito do futuro sempre “quer crer”...

Qual é a inovação financeira da moeda eletrônica ou digital? Não ser baseada em fidúcia estatal, ou seja, não ser emitida por um Estado nacional, mas sim estar circulando em escala mundial através de rede de computadores ligada pela internet. Bit é a sigla para Binary Digit [dígito binário], constitui a unidade de informação em computador ou cibernética equivalente ao resultado de uma escolha entre duas alternativas.

Os nerds em tecnologia, no caso, os Cyberpunk ou Ciberanarquistas, se cansaram de reunir “alta tecnologia e baixa qualidade de vida” (High tech, Low life). Buscaram elevar a qualidade de sua vida. Para isso, mesclaram ciência avançada, como as tecnologias de informação e a cibernética, com algum grau de mudança radical na ordem social.

Leigos em Economia Monetária, durante a crise mundial de 2008 descobriram que o poder do sistema bancário multiplicar moeda é fruto de efeito de rede, no caso, regulado pela Autoridade Monetária estatal. Não aceitando a submissão da sociedade aos poderes governamentais de “salvar bancos grandes demais para falir”, e adotando uma ação coletiva que se opõe, radicalmente, à autoridade do Estado, os Ciberanarquistas inovaram ao criar uma moeda digital fora da regulação estatal.

Há conceitos simples por trás dessa inovação monetária. Moeda é um ativo – forma de manutenção de riqueza – comumente oferecido ou recebido pela compra ou venda de bens e serviços. Moeda oficial é aquilo que o Estado recebe como pagamento de imposto. Já dinheiro é um ativo monetário, criado pelas forças do mercado e/ou pelo poder do Estado, com aceitação geral – legal e social – para desempenhar todas suas funções. Quais são essas funções? Meio de circulação, medida de valor, reserva de valor, capacidade liberatória de dívida, padrão de pagamento diferido, enfim, instrumento de poder econômico. Para ser dinheiro, uma moeda tem de cumprir as três primeiras funções, ou seja, ser meio de pagamento, unidade de conta e reserva de valor.

O bitcoin, por exemplo, é uma moeda internacional aceita por ainda relativamente poucos especuladores só como reserva de valor e unidade de conta. Portanto, é um dinheiro parcial, não pleno, pois seu uso disseminado como meio de pagamento dependeria de mais rapidez no processamento das transações e da redução de custos de transação. A oferta e a demanda determinam sua cotação. No caso de bitcoin, a oferta está dada em cerca de 16,5 milhões de unidades em circulação. Em seu caso, a demanda cria a oferta, ao contrário do que prega a Lei de Say? Cria no mesmo ritmo de conversão entre moedas oficiais e criptomoeda?

No início, após 2009, o uso de moedas virtuais era mais para o tráfico de drogas. Os usuários entravam em sites na internet (“deep web”) e compravam produtos ilícitos pagando com criptomoedas e os recebiam via Correios. Hoje, há pelo menos oito tipos de condutas criminosas, como o estabelecimento de empresa de fachada que atua na venda de mercadorias e recebe créditos proveniente de outras empresas especializadas em vendas pela internet para posterior distribuição de dinheiro a pessoas físicas.

Outro esquema usa cartões de credito e empresas fictícias para movimentação e pagamento de faturas de cartão em valores maiores do que os devidos. Assim se constitui um crédito no meio de pagamento que, posteriormente, é sacado no Brasil ou exterior.

Outro crime citado é o chamado “ransomware”, no qual ataques em escala mundial com um vírus sequestra dados de empresas e pessoas e condiciona a liberação ao pagamento de valores em moedas virtuais. Também se compra e vende imóveis por valores abaixo do mercado com posterior pagamento das diferenças via criptomoedas.

Há, além disso, a constituição de empresa de fachada com atuação em comércio internacional, para abrir uma conta em corretora de moeda virtual, que passa a centralizar a movimentação de moedas digitais de diversas pessoas físicas, como se fossem clientes independentes. Por exemplo, os recursos transferidos para a corretora de moeda virtual são utilizados para compra de bitcoins no Brasil e posterior venda em outros países, com objetivo de remeter recursos para o exterior. Assim, operações fictícias de comércio exterior e corretoras de câmbio realizam remessa ilegal de divisas.

Um efeito de rede, também designado externalidade de rede ou busca de economias de escala, é o efeito que um adquirente de um ativo tem sobre o seu valor para outros compradores. Quando o efeito de rede estiver presente, o valor dessa forma de riqueza depende do número de aquisições realizado por outras pessoas.

Quanto mais bitcoins adquirem os especuladores, mais valioso se torna a moeda digital para cada proprietário. Isso cria uma externalidade positiva mesmo porque um deles pode comprar uma criptomoeda sem a intenção de criar valor para os outros utilizadores dela, mas acaba por fazê-lo. As redes sociais online funcionam da mesma forma retro alimentadora. Logo, as moedas virtuais alcançam maiores cotações quanto mais compradores aderirem.

Depoimentos de “celebridades” ou imaginários sucessos alheios, quando todo o ser humano se imagina superior aos outros, aquecem essa febre especulativa, validando a profecia autorrealizável. Compra-se porque a cotação está subindo e esse valor cresce porque está se comprando. Torna-se o clássico caso de Pirâmide da Felicidade (ou Esquema Ponzi) quando as novas entradas que determinam os ganhos dos que saem antes da explosão da bolha especulativa. Ela não tem fundamentos em geração de empregos e renda, mas sim está inflada com base em mera troca de propriedades.

Externalidades de rede negativas também poderão ocorrer quando os utilizadores das criptomoedas para ganhos fáceis reverterem suas expectativas face aos “mineradores” ou validadores das transações. Usando um computador potente, estes ficam testando uma combinação de letras e números até encontrar a chave correta do próximo bloco da cadeia. O blockchain é o protocolo da confiança em registros compartilhados.

No caso do bitcoin, um novo bloco é adicionado à cadeia a cada dez minutos. O minerador ou grupo de mineradores que consegue descobrir a chave antes dos outros fica com a recompensa, que hoje é de 12,5 bitcoins a cada intervalo. Com o tempo, o prêmio vai diminuir em quantidade. Em congestionamentos de rede, os “mineradores” podem registrar maior quantidade de um ativo com menor valor.

Assim como os efeitos positivos de rede podem criar um ciclo de feedback positivo quando a rede se torna mais valiosa e mais pessoas se juntam a ela, o inverso também é verdadeiro. Em todas as bolhas, os espertos insiders saíram antes de sua explosão e os idiotas outsiders constataram que entraram para a inflar – e ficar com o mico-preto.

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