Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal
No entanto, a compreensão desse tipo de comportamento é ainda mais relevante por nos encontrarmos sob um estado de crise fiscal profunda e com uma orientação bastante ortodoxa do ponto de vista da gestão dos recursos públicos. A narrativa da exigência da austeridade na condução da política fiscal tem levado a administração pública a sucumbir perante um estado de semi destruição. O ímpeto com que os liberaloides levam a cabo sua operação desmonte é bem capaz de promover o desaparecimento do Estado.
A opção pela estratégia do austericídio combinou a manutenção de juros oficiais bastante elevados e a gestão dos recursos orçamentários na base de cortes e mais cortes. Para tentar cativar a opinião favorável do grande público ignorante em economia, os representantes do capital financeiro passaram a martelar sistematicamente nos meios de comunicação uma velha e conhecida cantilena. A estória de que “o governo não pode gastar aquilo que não tem” e outras pérolas de quem pretende explicar a administração da economia de um dos maiores países do mundo como se fossem as finanças domésticas de uma família que vive de salário ou da aposentadoria de seus membros.
Austericídio e “contração expansionista”
A charlatanice envolvida nesse discurso não resiste a qualquer análise e muito menos aos números oficiais divulgados pelos próprios órgãos encarregados das estatísticas públicas. Afinal, apesar de todo o esforço por cumprir à risca a monstruosidade dos cortes de verbas de forma indiscriminada, o fato é que o déficit nas contas do governo federal só fez aumentar. Mas esse paradoxo é apenas aparente. Isso se explica pela estratégia de se ter promovido uma recessão deliberada em nossa economia, com o intuito de “reduzir a demanda agregada e acertar o equilíbrio pelo lado do PIB potencial”. Haja economês prá tamanha insensatez!
De nada adiantaram os reclamos e as críticas de todos aqueles que alertávamos contra essa ideia maluca da “contração expansionista”. Sim, pois havia - e ainda há - economistas e pesquisadores que propunham explicitamente que o caminho do “ajuste” deveria ser o da redução do nível da atividade econômica. E que se orientavam por uma forte crença de que esse contracionismo todo levaria a uma expansão do PIB. Uma tremenda loucura, mas que beira a irresponsabilidade criminosa, principalmente quando se transforma em política pública decidida e implementada pelos altos dirigentes do Ministério da Fazenda e do Banco Central.
Talvez seja necessário relembrar que a recessão não é uma opção neutra e indolor de política econômica. Muito pelo contrário, ela provoca destruição física e social. A queda no PIB significa a falência de empresas e o desemprego. Não bastassem esses fatos para que qualquer pessoa de bom senso a descartasse “a priori” como alternativa para a solução da crise, o fato é que a recessão é um tiro no pé, mesmo do ponto de vista conservador. Sim, pois com a redução da atividade econômica, a capacidade de arrecadação de impostos também se vê bastante diminuída.
A dívida pública cresceu 13%
Assim, a intenção inicial do economista cabeça de planilha se frustra logo de início. E a contração expansionista se apresenta como uma impossibilidade. Tanto mais em um país como o nosso, onde a estrutura de impostos é altamente regressiva e se concentra na taxação da renda, do consumo e da produção. Com a recessão, o Estado arrecada menos. E a questão do equilíbrio fiscal fica ainda mais comprometida. Afinal, menos receitas públicas significam maior déficit, uma vez que há parte das despesas que não podem (e não devem!) ser reduzidas.
Mas o fato é que nem assim, a magiquinha funcionou. O governo aprofundou a ditadura do superávit primário, com o argumento de que as finanças deveriam ser equilibradas. Mas apesar desse esforço, a dívida pública federal cresceu a níveis muito mais elevados que qualquer outro indicador econômico. E esse fato foi ainda agravado em termos da qualidade do serviço público, uma vez que a lógica do corte nas despesas se limita às despesas na área social e nos investimentos. As despesas financeiras com juros pagos pelo governo federal, por exemplo, tinham liberdade total de crescimento. E aí ficamos o pior dos dois mundos: i) compressão dos programas sociais e aumento das despesas financeiras do orçamento; ii) aumento dos valores relativos à dívida pública.
Os dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) apontam para um estoque total da dívida pública federal em poder do público de R$ 3,43 trilhões em setembro passado. Esse montante apurado representa um crescimento expressivo em relação ao total que havia de endividamento em outubro de 2016, quando o valor era de R$ 3,03 trilhões. Ou seja, o valor da dívida cresceu R$ 398 bilhões. Isso significa que o valor total dos títulos públicos federais em poder do público aumentou da ordem de 13% ao longo dos últimos 12 meses.
Gasto com juros: R$ 424 bi em 12 meses
Ora essa taxa de crescimento da dívida revela-se ainda mais preocupante em um cenário marcado por 2 anos sucessivos de recessão da economia, com queda de quase 8% do PIB entre 2015 e 2016. A própria inflação também foi bastante diminuída por conta da receita da austeridade e o ritmo de crescimento dos preços encontra-se situado abaixo de 3% anuais. O conjunto das finanças públicas encontram-se sob rígido controle de gastos, ao menos nas despesas ditas “primárias” - saúde, educação, previdência social, saneamento e similares. Ou seja, poucos indicadores cresceram tanto como a dívida pública ao longo dos últimos 12 meses.
Na verdade, tal aumento relativo do peso do endividamento público expressa de forma flagrante o processo de financeirização de nossa economia e de nossa sociedade, uma vez que fica evidenciada a dominância da dimensão financeira sobre todas as demais atividades do setor real - áreas vinculadas à produção de bens e ao fornecimento de serviços essenciais.
Esse aspecto dramático de drenagem de recursos e preocupações do conjunto da sociedade para o sistema financeiro fica ainda mais agravado quando se incorpora à análise as informações relativas ao pagamento de juros e demais serviços da dívida pública. As estatísticas do próprio Banco Central confirmam tal tendência. A versão mais recente da Nota de Política Fiscal da instituição revela que, ao longo dos 12 meses entre setembro de 2016 e agosto de 2017, foram consumidos R$ 424 bilhões de recursos públicos federais para cumprir despesas com esse tipo de rubrica.
Financismo no comando: mais juros e mais dívida
Assim, esse duplo movimento - juros e dívida - escancara a espoliação sistemática a que vem sendo submetida a maioria da população de nosso País. E aqui não me refiro apenas aos trabalhadores e demais segmentos dos desfavorecidos. Na verdade, a maior parte dos setores empresariais não consegue obter nenhum benefício desse tipo de política econômica para a recuperação do seu próprio ramo de atividade. Vivemos sob a égide do financismo no comando de tudo.
O austericídio esmaga a dimensão social e drena o subproduto de tal violência para o setor financeiro. Esse é o verdadeiro sentido do pagamento dos juros em tal volume, numa conjuntura em que todas as outras despesas orçamentárias estão sendo vilipendiadas. Porém, a situação fica ainda mais agravada pelo fato de que nem mesmo todo esse esforço basta. Além do pagamento dos juros, o processo que privilegia apenas e tão somente a dimensão financista termina por promover esse brutal elevação no estoque da dívida pública.
O sentido de tudo isso é o sinal de alerta que vai logo entrar em funcionamento para exigir ainda mais austeridade nos períodos futuros. Aguardemos, pois os colunistas de economia dos grandes meios de comunicação não tardarão a clamar, sempre no clima catastrofista que lhes é peculiar, contra a suposta “explosão da dívida pública em níveis inaceitáveis”.
Sim, pois essa é a verdadeira armadilha a que estamos submetidos. Somos conclamados a contribuir com o nosso sacrifício e o governo nos suga corpo e alma a título de colaboração para sairmos da crise. No entanto, nada é suficiente. O financismo quer mais e mais, pois o topo da pirâmide não aceita ser chamado a oferecer seu quinhão.