Luiz Gonzaga Belluzzo é economista, professor, consultor editorial da revista Carta Capital
Após o crescimento de 0,5% em 2014, a economia do País descambou para dois anos de depressão. Espremida pelo desajuste fiscal, a infeliz pula miudinho em 2017 para crescer 0,3%. Essa é a mais recente estimativa do senhor Meirelles, ministro-chefe da equipe dos sonhos do mercado.
O mercado sonha e o povaréu vive o pesadelo do aumento de impostos, do desemprego e da queda de salários. O desempenho pífio de 2014 deu voz aos colunistas do mercadismo, que perfilham as teorias econômicas do programa humorístico Casseta & Planeta. Baixam a Casseta na ninguenzada, esgrimindo argumentos tão lunáticos quanto pedestres.
Com permissão do caro leitor, vamos repetir o que já dissemos aqui: a interação entre o choque de tarifas, a subida da taxa de juros, a desvalorização do real e o corte dos investimentos públicos determinaram a elevação da inflação em simultâneo à contração do nível de atividade e daí à restrição do crédito.
O encolhimento do circuito de formação da renda levou, inexoravelmente, à derrocada da arrecadação pública. Sob o peso massacrante do colapso da atividade econômica, a inflação despenca para a casa dos 3%.
O mergulho depressivo iniciado entre o crepúsculo de 2014 e a aurora de 2015 pode ser apresentado como um exemplo do fenômeno que as teorias da complexidade chamam de “realimentação positiva” ou, no popular, “quanto mais cai, mais afunda”.
O déficit primário ameaça estourar a marca dos 139 bilhões de reais. Namora as grandezas de 180 bilhões. Os sonhos da equipe prometem mais contingenciamento de despesas e, possivelmente, mais impostos.
Em sua Carta de Conjuntura nº 35, publicada no segundo trimestre de 2017, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) destaca que a política fiscal no primeiro quadrimestre deste ano caracterizou-se pela continuidade de déficits primários relativamente elevados, e por déficits nominais ainda em torno de 9% do PIB, pela pressão ainda forte dos juros.
A dívida pública manteve-se em crescimento como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), atingindo 47,7% no conceito “dívida líquida do setor público consolidado” e 71,7% no conceito “dívida bruta do governo geral”.
Segundo a Carta do Ipea, tal desempenho reflete dois fatores: a queda de quase 2% em termos reais das receitas do governo federal – devido à retração da atividade econômica – e a rigidez das despesas que, não obstante, caíram 4,3% reais em relação ao primeiro quadrimestre de 2016.
Dentre as despesas que vêm sofrendo reduções mais fortes estão os subsídios, compensações ao Regime Geral da Previdência Social e abono salarial, incluídas entre as “outras despesas obrigatórias”, e os investimentos, incluídos nos gastos discricionários.
As despesas discricionárias caíram 26,7% em termos reais no primeiro quadrimestre, relativamente ao mesmo período de 2016. Destaca-se, nessa comparação, a redução real de 65,8% nas despesas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Minha Casa Minha Vida. Afirmam os economistas do Ipea que “o escopo para a ampliação do ajuste nos termos em que vem ocorrendo parece limitado”.
Diante da profundidade da recessão, a queda nas taxas de juro é necessária e bem-vinda, mas não suficiente para a recuperação da economia brasileira. Mesmo com a queda no custo de acesso ao crédito, a “racionalidade” dos empresários de carne e osso não recomenda se endividar, investir, ampliar a capacidade produtiva e contratar empregados, com ociosidade nas fábricas e na ausência do crescimento da demanda.
Sem a retomada das contratações e queda do desemprego, como esperar o retorno do consumo? Isso só acontece no mundo imaginário dos modelos da turma do Casseta & Planeta.
De acordo com estimativas do Centro de Estudos do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Cemec), a taxa de investimento de empresas e famílias caiu de 19% em 2013, ponto mais alto dos últimos anos, para 13,7% do PIB em dezembro de 2016, o pior nível desde 2000.
A pífia taxa de investimento do setor público, que era de 3% em 2014, caiu para 1,8% do PIB em 2016, o menor nível desde 2004.
No que tange o mercado de trabalho, a Carta de Conjuntura do Ipea destaca que o contingente de trabalhadores desempregados na economia brasileira saltou de 7,9 milhões no primeiro trimestre de 2015 para 14,2 milhões no primeiro trimestre de 2017, o que significa aumento de quase 80%.
Apenas nos últimos 12 meses, contabilizados até abril de 2017, 2,2 milhões de brasileiros passaram à condição de desocupados.
Além disso, a taxa de permanência no desemprego cresceu. No primeiro trimestre de 2017, 48% dos trabalhadores desocupados não conseguiram nenhuma colocação no mercado de trabalho, independentemente do tipo de ocupação.
No mesmo período de 2016, essa cifra era de 44%. Na comparação com o período pré-crise, essa alta é ainda mais expressiva, tendo em vista que, no início de 2012, a proporção dos trabalhadores que se mantinham na condição de desempregados era de 35%.
A trapalhada não consegue ensinar aos teóricos das finanças domésticas que, para a economia como um todo, as desacelerações cíclicas devem ser tratadas com sabedoria e prudência. O ajuste empreendido entre 2014 e 2015 tipifica um crime de lesa-inteligência executado com a cumplicidade dos repetidores da mídia.
O processo de “realimentação positiva” decorre das relações entre empresas endividadas e inadimplentes, bancos temerosos e consumidores ameaçados pelo desemprego.
As fábricas encharcam-se de capacidade ociosa. Endividadas em reais e em moeda estrangeira, as empresas são constrangidas a ajustar seus balanços diante das perspectivas de queda da demanda e do salto do serviço da dívida.
Para cada uma delas é racional dispensar trabalhadores, funcionários, assim como, diante da sobra de capacidade, procrastinar investimentos que geram demanda e empregos em outras empresas. Para cada banco, individualmente, era recomendável subir o custo do crédito e racionar a oferta de novos empréstimos.
Os consumidores, bem, os consumidores reduzem os gastos. Uns estão desempregados e outros com medo do desemprego. Assim, o comércio capota, não vende e reduz as encomendas aos fornecedores, que acumulam estoques e cortam ainda mais a produção.
As demissões disparam. A arrecadação míngua, sugada pelo redemoinho da atividade econômica em declínio. Isso, enquanto a dívida pública cresce sob o impacto dos juros reais e engorda ainda mais os cabedais do rentismo caboclo.
As decisões “racionais”, do ponto de vista das finanças domésticas, prestam homenagem às falácias de composição que infestam os modelos macroeconômicos do Casseta & Planeta: o que parece bom para o ‘agente individual’, seja ele empresa, banco ou consumidor, é danoso para o conjunto da economia.