Domingo, 24 Novembro 2024


Gilberto Giusepone é diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber

“A pátria não pode subsistir sem a liberdade, nem a liberdade sem a virtude, nem a virtude sem os cidadãos. Isso é possível quando os cidadãos são educados para tal, caso contrário têm-se apenas escravos ruins, começando pelos próprios chefes de Estado” (Jean-Jacques Rousseau)

Poucas horas após sua divulgação, a Medida Provisória encaminhada pelo governo visando reformar as bases do ensino médio foi objeto de expressivas manifestações de perplexidade e indignação. Não bastasse o fato de uma iniciativa dessa magnitude ter sido imposta autoritariamente, sem nenhuma discussão, salta aos olhos o fato de que o governo tenha chamado o MBL (Movimento Brasil Livre), cuja agenda é abertamente ultraliberal e conservadora, para ajudar a tornar reformas como a do ensino médio “mais palatáveis”.

O número considerável de críticas veiculadas quase que imediatamente após a divulgação do projeto mostrou que educadores, pesquisadores, cientistas e ativistas do aviltado campo democrático brasileiro conseguiram prontamente identificar a iminência de um desastre.

É desnecessário reafirmar que o ensino médio, de fato, carece de reformas estruturais, considerando as questões historicamente não resolvidas e que têm penalizado a juventude com a oferta de um ensino médio sempre aquém das expectativas e necessidades.

Porém, essa iniciativa do governo passou ao largo de questões que há décadas cobram alternativas concretas. Sequer foram levados em conta os argumentos daqueles que pesquisam o ensino médio desde a década de 1980, especialmente no universo dos programas de pós-graduação em educação que, no Brasil, têm reconhecido nível de excelência.
O que se viu foi o encaminhamento de um processo via Medida Provisória, que visivelmente excluiu os principais protagonistas da educação do debate, a começar do mais óbvio, os professores, gestores e pesquisadores da educação.

De forma igualmente preocupante, o texto reverbera a opinião de institutos vinculados a bancos e corporações financeiras. Ressuscita receituários típicos do Banco Mundial e faz coro com os protagonistas mais ativos da militância em prol da privatização da educação pública.

Talvez por isso mesmo, tal como ocorreu nos tempos da ditadura, propõe-se o fatiamento do currículo, agora com cinco ênfases ou itinerários formativos. Parece uma oportunidade de diversificar a formação, mas, na prática, essa estrutura significa negar um dos maiores ganhos da LDB 9394-1996, que tomou por ponto de partida o direito universal a uma formação básica comum, evitando um processo de escolarização que segregasse pessoas em opções de profissionalização.

A reforma proposta desorganiza a já precária oferta básica de conteúdos e faz com que o próprio Estado passe a induzir desigualdades de oportunidades educacionais. Se couber às redes de ensino a decisão final de estabelecer quais itinerários de formação poderão ser cursados conforme suas “reais possibilidades”, fica evidente a possibilidade de que locais com maior precariedade tenham opções mais precárias do que locais com maiores possibilidades de escolha.

O governo e o Ministério da Educação em particular desrespeitam as licenciaturas. Isso ocorre especialmente quando se propõe autorizar a oficialização da presença de professores não formados e chega a níveis não imaginados quando se propõe institucionalizar a presença de profissionais não formados, mas “com notório saber”.

Os que conhecem as redes estaduais sabem que essa proposta é, na realidade, um dos mais fortes gestos de precarização do trabalho docente, especialmente pela imprecisão contida na noção de “notório saber”, com grande vulnerabilidade ao estímulo da presença de lideranças empresariais, religiosas e esportivas entre aqueles que “merecem ser ouvidos”.

A menção à jornada de tempo integral é um fetiche. Panaceia para todos os males, a escola em tempo integral é vista como dinâmica para retirar jovens das ruas. Todavia, sem investimentos permanentes, tal iniciativa torna ainda mais precária a oferta, porque aumenta a evasão dos que têm que trabalhar e gera desequilíbrio em relação ao aluno do ensino noturno, transformado em “peso” por essa reforma.

A profissionalização como uma das opções formativas está posta em bases precárias e, na prática, desvinculada do universo da cultura escolar, uma vez que, para essa ação, se prevê uma forte privatização, com parcerias, por exemplo, com o sistema S, não identificando como inibir desigualdades entre os locais com “parceiro forte” e locais sem qualquer parceiro.

A controversa sobre retirada da obrigatoriedade de disciplinas como Filosofia, Sociologia, Artes e Educação Física, ora afirmada ora negada pelo governo, é um golpe na essência da atual LDB que propõe sempre diversificar garantindo mais acesso (e não menos) à formação crítica no âmbito da argumentação científica, ética e estética.

Uma das bandeiras mais respeitadas dos educadores brasileiros é a luta para que as reorganizações curriculares sempre respeitem diferenças e mantenham a garantia de formação básica comum, sem reinventar hierarquias de qualquer espécie.

Essas hierarquizações reaparecem na proposta à medida que se retoma uma especialização precoce e se institucionalizam diferenças entre os que podem cursar um ensino médio mais “equipado” e os que podem cursar “aquilo que é possível”.

Uma reforma desse porte não menciona a complexa questão da avaliação no ensino médio, o que faz antever a gestação de um processo de desmonte do ENEM, um dos expedientes mais democratizantes que a sociedade brasileira conquistou nos últimos anos.

O texto da reforma menciona cifras, valores e rubricas orçamentárias, mas ignora a profunda necessidade de investimentos infraestruturais, o que quer dizer, espaços mais qualificados e salários mais dignos.

É um texto que pode ser reconhecido não somente pelo que propõe, mas também pelo que esvazia. Nesse sentido, o ensino médio noturno foi bastante esvaziado, inclusive com a distinção de recursos para as escolas com maior tempo de atividade durante o dia, relegando ao aluno da noite as sobras de tempo e de recursos.

Os princípios da Constituição de 1988 e da LDB de 1996 garantem que ao Estado é vedado oferecer educação diferenciada para diferentes estratos sociais, especificamente para o aluno pobre. Se tais princípios forem desrespeitados, cria-se mais uma vez um ardil para estabelecer itinerários de formação empobrecidos para os que “precisam trabalhar”, sempre com a evocação das demandas de mercado como orientadoras “do que importa” para a educação.

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