Cientista político e professor universitário
Ao contrário do que supõe o senso comum, um governo eleito não dispõe de todos os poderes políticos de uma sociedade. Em qualquer lugar do mundo, a composição é necessária, independentemente do regime político ou do grupo que ascende ao poder. Negociação é componente fundamental de um bom governo. Para realizar boas medidas, é preciso antes saber fazer boas negociações.
Não vou entrar no mérito das polêmicas recentes sobre temas específicos como o seguro-desemprego, a taxa de juros ou as políticas sociais e as contas públicas. Este artigo pretende tratar das macrodecisões do governo Dilma e da relação com as estruturas políticas que geram apoio ou críticas ao governo. Vamos tratar de governabilidade.
Para a Ciência Política, governabilidade é o conceito ligado à capacidade de governo em aprovar projetos junto ao Legislativo. Basicamente, estamos olhando para os partidos políticos e a composição que sustenta o governo no Congresso. Enquanto, nos EUA e Europa, por exemplo, a governabilidade pode ser definida por dois ou três partidos – ou a China que é um caso de partido único –, no Brasil são 28 partidos com representação no Legislativo e, para se construir maioria simples, é preciso pelo menos cinco ou seis partidos na base do governo.
As características do nosso sistema político são desastrosas quando o propósito é a negociação para a governabilidade. A articulação obriga qualquer governo a abrir mão de parte do seu projeto político para compor maioria no Congresso.
Veja o governo Dilma que, com 10 partidos representados no primeiro escalão do governo, não foi capaz da influenciar na eleição para presidência da Câmara e agora tem na casa um político não só independente em relação aos interesses do governo, mas que muitas vezes poderá se comportar como adversário político mesmo sendo da base aliada.
Mas, não é só isso. Para governar também é preciso mobilizar interesses materiais, então os cientistas políticos passaram a chamar a atenção para outro tipo de interferência sofrida pelo Legislativo e distinguiram a governabilidade política da governabilidade econômica.
A capacidade que grandes empresas e organizações patronais têm de fazer valer seus interesses junto ao Estado e sua capacidade para mobilizar a chamada opinião pública em seu favor fez com que se considerasse o fato de que as elites econômicas também disputam a governabilidade, ou, pelo menos, influenciam nesse processo.
O que ocorre hoje não é novidade.
A ascensão do PT ao governo federal em 2002 complicou-se em ambas as governabilidades. De um lado o partido dispunha de pouco apoio político no Congresso e se obrigou a ampliar o leque de alianças. De outro lado, a desconfiança dos setores econômicos não proporciona ao governo apoio junto ao empresariado.
Com essa conjuntura inóspita, o Partido foi forçado a buscar condições de governabilidade muito particulares. O PT, sob a batuta de Lula, desenvolveu uma nova fonte para sua governabilidade mobilizando os setores sociais que o elegeram.
Num processo ambíguo e cheio de contradições, a presença dos movimentos sociais, sindicatos, associações da sociedade civil e movimentos de esquerda puderam influenciar decisões, manifestando apoio ao governo ou enfrentando outras forças políticas numa disputa do que antes lhes era renegado e exclusivo do capital e das oligarquias políticas.
Os governos petistas pautaram-se sempre pela conciliação. Para isso, construíram alianças, compuseram propostas, abriram mão de alguns avanços em função da resistência conservadora. A opção foi pelo consenso. Mas, em todos os momentos, os caciques políticos e as elites econômicas tiveram que conviver com a posição dos setores sociais no processo de construção do consenso.
O primeiro governo Dilma seguiu a mesma linha de Lula, ainda que com resultados mais modestos. Enfrentou talvez reação mais intensa dos setores tradicionais da governabilidade política e econômica porque viram nela menos mobilização dos setores sociais. Agora as deliberações do seu segundo governo diminuem ainda mais a relação com a governabilidade social.
O problema é que isso pode gerar ainda mais dificuldades.
Ao sinalizar ao mercado financeiro e a governabilidade econômica e nomear Joaquim Levy para a Fazenda, Dilma decidiu aproximar-se das elites econômicas para não manter-se em conflito com os setores descontentes e re-estabelecer a confiança. Depois se preocupou em nomear ministros que pudessem construir sua governabilidade política. Para ficar apenas em alguns dos exemplos, Cid Gomes, Kassab, Katia Abreu e George Hilton são da base política e foram nomeados com a incumbência de dar sustentação partidária ao governo.
Agora vemos que, mesmo com todos os esforços de articulação política, Eduardo Cunha furou o bloqueio e elegeu-se presidente da Câmara. É importante lembrar que foi dele a mobilização para derrubar o decreto que regulamentava a participação dos conselhos sociais.
Dilma investiu na governabilidade política e econômica ao passo em que se afastou da articulação da governabilidade social. Suas primeiras medidas distanciam o governo de sua base – e, certa forma, da militância do seu próprio partido. Os acontecimentos podem rumar para o conflito aberto quando o Ministro da Fazenda, representante da governabilidade econômica, não dialoga com os representantes da governabilidade social e impõe suas medidas, e o presidente da Câmara pode criar constrangimentos.
Não estamos tratando de autonomia, são enfrentamentos políticos. E é assim, na definição das decisões e preferências, que o governo determina seu rumo.
De fato, ou a governabilidade social entra no cálculo, ou o projeto político do PT perde espaço.
O momento é claramente delicado para manter e avançar nas políticas que representam de fato mudanças e marcaram a passagem do PT pelo Palácio do Planalto. Assim, é fundamental perceber que a governabilidade social permitiu vitórias importantes para os governos Lula e Dilma. Essa costura não foi apenas uma inovação do petismo, mas também o pilar dos projetos sociais. Um cálculo político astuto e inovador que parece ter sumido neste início de segundo mandato.