Cientista social e assessor legislativo do Partido dos Trabalhadores
Na Grécia, principal vítima desse “austericídio” econômico, as coisas só pioram. Com efeito, mesmo cumprindo rigorosamente as medidas impostas pela Troika, à custa de sofrimento indizível de sua população, a relação entre dívida e PIB na Grécia subiu de 105%, em 2008, ano em que a crise se iniciou, para 175%, em 2014. Com a economia encolhida em 20%, não há como melhorar essa relação. Quanto mais a Grécia paga, mais ela deve.
Os ortodoxos, no entanto, defendem as medidas contraproducentes, com o argumento, entre outros, de que os contratos, inclusive os relativos às dívidas soberanas, devem ser escrupulosa e estritamente cumpridos, sob pena de se criar instabilidade e insegurança no “mercado”, as quais impediriam a suposta recuperação dos investimentos e do crescimento.
Alguns até argumentam que a Alemanha, terra de gente séria e trabalhadora, sempre cumpriu escrupulosamente seus contratos e honrou suas dívidas até o último centavo. A Grécia e outros países “irresponsáveis” e “gastadores” deveriam se inspirar nesse exemplo edificante.
Não é bem assim. Na posição de devedora, a Alemanha teve um comportamento bem diferente.
Além de ter entrado em “default” várias vezes ao longo da década de 1930, em virtude da crise mundial e das imposições draconianas impostas pelo Tratado de Versalhes, a Alemanha acabou se beneficiando, no pós-guerra, de uma profunda e generosa reestruturação de suas dívidas.
No início da década de 1950, a Alemanha Ocidental, desejosa de se reintegrar ao sistema econômico mundial, iniciou uma série de negociações com os EUA, a França e a Grã-Bretanha para resolver o problema de suas pesadas dívidas.
O quadro não era fácil. Em virtude de seus vários “defaults”, da suspensão definitiva de muitos pagamentos pelo governo nazista e da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha era vista, pela maior parte dos credores externos, como um país “irresponsável” no tratamento de suas dívidas e “hostil” à propriedade de estrangeiros. Na realidade, havia 20 anos que a Alemanha tinha reduzido ou suspendido os pagamentos da dívida, em franca violação aos contratos firmados.
Os britânicos, em particular, queriam impor o pagamento total das dívidas contraídas no pré-guerra e no pós-guerra e exigiam o respeito estrito aos contratos assinados.
Entretanto, o chanceler alemão da época, Konrad Adenauer deixou claro, desde o início, que as negociações deveriam ter como objetivo principal a “normalização” das relações econômicas e financeiras da Alemanha com os outros países e que elas deveriam levar em consideração o fato de que o país passava por uma redução de sua afluência e riqueza. Em outras palavras, Adenauer reconhecia as dívidas, mas condicionava seus pagamentos à capacidade efetiva da Alemanha Ocidental de realizá-los.
Após negociações muito difíceis, os EUA resolveram “bancar”, em linhas gerais, a posição alemã e forçaram os britânicos, franceses e credores de outras nacionalidades, inclusive gregos, a assinarem o famoso Acordo de Londres sobre a Dívida, de 1953.
Tal acordo se baseava em três princípios essenciais.
Em primeiro lugar, ele reduzia substancialmente tanto a divida alemã do pré-guerra, quanto a do pós-guerra. Em 1953, a dívida da Alemanha contraída no pré-guerra ascendia a 13,5 bilhões de marcos, ao passo que a dívida contraída no pós-guerra totalizava 16,2 bilhões de marcos. Pois bem, o acordo as reduziu para 7,5 bilhões de marcos e 7 bilhões de marcos, respectivamente. Assim, com uma canetada, a dívida total da Alemanha foi reduzida a menos da metade.
Em segundo lugar, os prazos para pagamentos foram consideravelmente dilatados. O acordo previa até mesmo que, no período de 1953 até 1958, a Alemanha Ocidental ficava isenta de amortizar o principal da dívida, restringindo-se aos pagamentos de juros, os quais também foram reduzidos pelo acordo.
Em terceiro lugar, e muito mais importante, o montante dos pagamentos da dívida ficava condicionado à capacidade da Alemanha Ocidental de realizar transferências para o exterior. Assim, os pagamentos anuais não podiam exceder, em valor, 5% do total das exportações germânicas. Tal cláusula assegurava que o pagamento da dívida não se faria à custa de uma redução do consumo doméstico alemão e, por consequência, dos empregos e dos salários dos trabalhadores germânicos. A Alemanha pagaria apenas uma fração daquilo que conseguisse exportar.
Com isso, criava-se também um incentivo para que os países credores da Alemanha importassem produtos Made in Germany, o que estimularia a recuperação alemã.
Além desses três princípios, o acordo continha outros dispositivos que beneficiavam a Alemanha devedora. Por exemplo, os contratos da dívida do pré-guerra possuíam cláusulas que atrelavam à dívida ao preço do ouro, como forma de defender os credores da inflação alemã. Contudo, o Acordo de Londres acabou o usando o dólar como referência de valor. Como os EUA tinham desvalorizado a sua moeda em relação ao ouro, esse dispositivo reduziu adicionalmente a dívida alemã.
O Acordo de Londres também permitia que parte dos pagamentos fosse feita em marcos alemães, em vez das moedas dos credores, como dólares, francos ou libras esterlinas. Isso permitia que parte da dívida pudesse ser paga com a emissão de moeda nacional. Embora Alemanha não tenha abusado dessa cláusula, ela possibilitava, eventualmente, uma válvula de escape.
O resumo dessa generosa ópera londrina é que a Alemanha, beneficiada pela racional reestruturação de suas pesadas dívidas e estimulada também pelos aportes do Plano Marshall conseguiu, em pouco tempo, se transformar, de novo, numa das principais economias do mundo.
Entre 1953 e 1963, a Alemanha Ocidental simplesmente mais que duplicou o seu PIB, transformando-se numa grande exportadora de produtos industrializados para toda a Europa. Os pagamentos da dívida, que se tornaram fixos em 765 milhões de marcos a partir de 1958, ficaram cada vez mais insignificantes, em proporção às enormes e crescentes exportações alemãs.
Em meados da década de 1960, a maior parte dos empréstimos já havia sido quitada e, em 1970, a dívida alemã era residual.
Em retrospectiva, não há quem não reconheça que, além da competitividade industrial e tecnológica alemã, o Acordo de Londres teve papel significativo no “milagre alemão do pós-guerra”.
Um acordo desse tipo, que racionalmente condiciona os pagamentos da dívida à capacidade efetiva de honrá-los, sem levar o país devedor à recessão destruidora e inútil, é tudo que a Grécia e outros países europeus necessitam. Afinal, a Grécia generosamente assinou o Acordo de Londres, na condição de credor de uma Alemanha então financeiramente “irresponsável”.
Tsipras e o Syriza querem, democraticamente, levar essa discussão para o seio da União Europeia, visando não apenas salvar a Grécia, mas também a própria integração europeia.
As circunstâncias internacionais e nacionais são, é óbvio, inteiramente diferentes, mas o princípio básico consagrado no Acordo de Londres permanece: contratos e acordos só funcionam se forem sustentáveis. Contratos que reduzem a capacidade de pagamento de países devedores e arruínam suas economias são, ao contrário, insustentáveis e irracionais.
Tsipras, engenheiro de profissão, homem cartesiano, quer injetar um pouco de racionalidade na ortodoxia cega.
O Acordo de Londres foi elaborado porque os EUA tinham um objetivo estratégico de longo prazo: fazer a Alemanha Federal e a Europa Ocidental se reerguerem, de modo a enfrentar o “perigo soviético”.
Resta ver se a Alemanha ainda aposta no objetivo estratégico de manter a União Europeia unida na prosperidade, da qual tanto se beneficia. Caso ainda persiga tal objetivo, será necessário dar ao devedor grego tratamento semelhante ao recebido pelo devedor alemão.